DURBAN, septiembre 2001: Depois de Durban
 

 

"O documento aprovado representa o consenso possível", avalia Edna Roland, relatora em Durban

Recém-chegada de Durban, na África do Sul, onde participou como relatora geral da III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, a psicóloga Edna Roland, presidente da organização Fala Preta!, conversou conosco sobre o que foi discutido - e conquistado - durante o evento.

O encontro teve o mérito de estimular o debate sobre as diferentes formas de discriminação. O boicote de norte-americanos e israelenses, no entanto, ajudou a esvaziar a Conferência, que acabou ficando aquém das expectativas. "Faltou compreensão de que o destino de toda a humanidade depende de uma ordem internacional mais justa", afirmou.

Rets - A III Conferência Mundial contra o Racismo foi marcada pela falta de tolerância entre os países participantes. A saída dos Estados Unidos e de Israel e a oposição dos países europeus às compensações aos povos que sofreram com a escravidão foram alguns dos conflitos ocorridos durante o evento que centralizaram a atenção da mídia. Para você, que foi relatora na Conferência, como foi o clima dessas discussões?

Edna Roland

A questão do Oriente Médio e a questão da escravidão, do tráfico de escravos e do colonialismo foram das mais difíceis enfrentadas pela Conferência. A questão do escravidão, do tráfico de escravos e do colonialismo foi tratada num grupo de trabalho coordenado pelo Embaixador Sabóia, do Brasil. Após intensas e duras negociações, chegou-se a um consenso em que se declara que a escravidão e o tráfico de escravos foram terríveis tragédias na história da humanidade, são um crime contra a humanidade e "deveriam sempre ter sido". O Oriente Médio requereu um grupo de trabalho especial coordenado pela própria presidente da Conferência, Madame Zuma, do qual resultou um conjunto de parágrafos nos quais se afirma a necessidade de combater tanto o anti-semitismo quanto o anti-arabismo e a islamofobia. Apela-se para o fim da violência e a necessidade de concluir as negociações que permitam um processo de paz entre Israel e os palestinos. Os acontecimentos de 11 de setembro demonstram que, mais do que nunca, é preciso que a paz se constitua no objetivo da comunidade internacional.

Rets - Para o público que assistia de fora, a impressão foi a de que houve uma dificuldade de comunicação entre os diversos delegados presentes - que resultou em muitas discussões sem conclusões práticas e, mesmo, em gestos de intolerância. Você concorda com esta visão?

Edna Roland

Esta Conferência histórica colocou na mesa, pela primeira vez, frente a frente, os descendentes daqueles que foram proprietários e os descendentes dos que foram reduzidos à condição de propriedade; os que tiveram as suas terras invadidas e ocupadas e os que se beneficiaram da conquista e da ocupação; os que se autodefiniram como superiores e os que foram definidos como inferiores. Era, portanto, de se esperar muitas dificuldades.

Rets - Como você avalia a participação de outros grupos que sofrem discriminação, como os índios e os homossexuais? Houve avanços para estes segmentos?

Edna Roland

Os povos indígenas foram reconhecidos como "povos". Ainda que se tenha ressalvado que tal reconhecimento não questiona os princípios da soberania e integridade territorial dos Estados, oferece uma base conceitual para a adoção de medidas legais e administrativas em benefício destes povos. No Brasil, por exemplo, deve-se avançar na reformulação do Estatuto do Índio. Quanto aos homossexuais, apesar da defesa intransigente do Brasil, com o apoio de outros aliados, não foi possível o reconhecimento da orientação sexual como um dos fatores de discriminação agravada.

Rets - De acordo com o documento final produzido, a conferência "reconhece e lamenta profundamente o sofrimento de milhões causado pela escravidão". Lamentar e demonstrar remorso é o suficiente para curar a ferida deixada no povo negro? Em caso negativo, o que deveria ser feito?

Edna Roland

O documento aprovado representa o consenso que foi possível ser atingido. É evidente que aos povos africanos e afrodescendentes caberá continuar trabalhando para que todos os estados e povos que se beneficiaram da escravidão e do tráfico de escravos venham no futuro a apresentar um pedido de desculpas pelos males causados e contribuam para a restauração da dignidade das vítimas.
Rets - O alívio da dívida externa e a assistência econômica para os países africanos seria uma forma válida de ressarcimento? Você acha pertinente esse tema ser abraçado pela discussão anti-racismo?

Edna Roland

A discussão das reparações é extremamente complexa, um dos seus aspectos é que deve ser reparado: os estados ou os descendentes. Acho pertinente que a conferência tenha incluído este tema, mas, da forma como foram elaborados os parágrafos iniciais, a partir da Conferência Regional de Dakar, referiam-se praticamente apenas à África.

Rets - Em que o reconhecimento da escravidão e do tráfico de escravos como crimes contra a humanidade mudará, na prática, o racismo enfrentado pelos negros?

Edna Roland

Este reconhecimento abre o caminho para uma série de medidas: por exemplo, poderão ser criados um Memorial às Vítimas da Escravidão e do Tráfico de Escravos, monumentos e museus deverão buscar recuperar a memória e a dignidade das vítimas e dos seus descendentes, que são também vítimas das conseqüências da escravidão corporificadas no racismo e na discriminação. É preciso provocar mudanças conceituais e emocionais através de diversas iniciativas. Da mesma forma, coloca-se a necessidade de políticas específicas destinadas a reparar as desigualdades causadas: ações afirmativas na educação, no trabalho, na saúde e na habitação para remover os obstáculos existentes.

Rets - Estima-se que aproximadamente mil brasileiros e cerca de cem ONGs estiveram presentes na Conferência. Como você resume a participação do Brasil? O que esses números revelam em relação ao interesse do Brasil em combater o racismo e à articulação do movimento negro no país?

Edna Roland

Não se sabe o número exato de brasileiros presentes, mas fomos a maior delegação estrangeira. O grande interesse demonstrado revela a urgência das ações que deverão ser tomadas pelos governos brasileiros - tanto federal, quanto estaduais e municipais.

Rets - O clima no Fórum de ONGs foi diferente do clima na Conferência oficial? Você diria que o encontro das ONGs foi mais frutífero?

Edna Roland

Houve dificuldades tanto no Fórum das ONGs quanto na Conferência Oficial, principalmente em torno da questão palestina. É verdade, todavia, que questões tais como o problema dos Dalits, a casta dos chamados intocáveis, foram amplamente debatidas e reconhecidas no Fórum das ONGs, não tendo sido incluídas no documento final oficial.

Rets - Agora, passado o evento de Durban, o que o Brasil deve fazer? Cumprir a agenda brasileira seria o bastante?

Edna Roland

Cabe agora revermos os documentos aprovados no Brasil à luz dos compromissos de Durban e de Santiago. Nas questões em que já tenhamos um consenso brasileiro mais avançado, como é o caso da orientação sexual, não há por que recuar. Quanto à questão da escravidão, em Durban se chegou a uma formulação mais avançada.

Rets - De uma forma geral, pode-se dizer que a III Conferência Mundial foi um sucesso ou um fracasso? Por quê?

Edna Roland

A III Conferência Mundial foi um marco histórico: colocou o racismo no centro do debate. A mídia tem focalizado mais o que não se conseguiu, omitindo os avanços alcançados. Durban deverá ser lembrada pelas políticas específicas que possibilitará no contexto nacional e internacional. Pela primeira vez, as Nações Unidas vão criar um espaço específico para tratar o problema dos afrodescendentes. A militância negra se prepara para cobrar o cumprimento dos acordos assinados.

Rets - O que faltou para a Conferência obter resultados mais positivos?

Edna Roland

Faltou vontade política dos países desenvolvidos, faltou compreensão de que o destino de toda a humanidade depende de uma ordem internacional mais justa e eqüânime.

Rits

 




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