A grande virtude deste Forum Social Mundial e da mesa de que
participo é a de relembrar que não existe forma
alguma de reconstruir o mundo, uma vez que ele foi demolido. Não
existe uma forma de reconstruí-lo sem tomar a distância
necessária, que permita ter uma visão histórica.
Se existe já um processo em andamento, o da globalização
neoliberal, acho que o que está acontecendo é uma
lobotomização dos cidadãos, ou seja, eles
vão ser arrancados, cindidos, afastados, de suas raízes,
porque querem que eles acreditem que não têm história.
Os processos que vivemos hoje datam, no máximo, de duas
ou três décadas atrás. Tudo o que vivemos
aqui, o que vivemos no nosso mundo de hoje, é um processo
muito longo. O professor Tariq lembrou muito bem: a globalização
começou com a conquista das Américas. Foi nesse
momento que surgiu o processo de integração mundial.
Basta lembrar os textos de um teólogo, Francisco de Vitória,
para perceber que a idéia de liberdade de troca, liberdade
de comunicação, liberdade de comércio, já
se encontrava inscrita na doutrina de legitimação
da conquista.
Vou começar por contar uma historinha. Em 1971, juntamente
com meu amigo Ariel Dorfmann, eu estava no Chile. Fiquei 11 anos
no Chile, e Ariel Dorfmann e eu escrevemos um livro contra o que
era um símbolo da cultura a que hoje nos referimos: essa
cultura do Pato Donald. O livro chamava-se Para ler o Pato Donald.
E nós concluíamos esse livro dizendo que os nossos
filhos do ano 2000 não seriam os filhos da cultura de massa,
mas os filhos e as filhas dos nossos processos de liberação.
Passaram-se 30 anos e, passeando em Paris com o meu filho, que
é um pintor, parei diante de uma escola primária
e, na janela da escola, viam-se os personagens de Disney. "Muito
estranho", disse eu. E o meu filho, que tem 30 anos e é
artista, se julga importante, respondeu: "Mas papai, por
que você está surpreso?" E ele é um artista,
um crítico da cultura. O que acho preocupante, e que faz
parte do contexto das lutas, é que agora as coisas se dão
de uma forma mais explícita. Quando nós escrevemos
Para ler o Pato Donald, eu diria que era possível perceber
uma certa ambição global nesse tipo de cultura de
massa. Mas, hoje em dia, se lermos um tratado de management ou
de geopolítica, podemos perceber que a noção
de cultura de massa que surgiu nos Estados Unidos ganhou a ambição
e se apresenta como um novo universalismo. Acho que esse é
um problema central. E gostaria de refletir sobre dois elementos.
O primeiro seria sobre a forma pela qual a cultura - a própria
noção e conceito de cultura - aterrissou nas discussões
com relação ao livre mercado, comércio etc.
Isso primeiramente. Em segundo lugar, gostaria de abordar algumas
referências que marcam as diferenças, os novos conceitos
que surgiram diante do significado de cultura por parte das amplas,
e contraditórias, frentes de luta cultural.
Começarei por lembrar uma frase do subcomandante Marcos.
Ele dizia que o século XXI será a IV Guerra Mundial,
que será uma guerra semiótica. É importante
refletir sobre essas palavras, pois atualmente nos vemos obrigados
a usar uma língua sobre a qual não temos controle.
Aparentemente, alguém, de certa forma, nos impõe,
a partir de algum lugar, conceitos que utilizamos no nosso dia-a-dia
que comprovam essa noção de globalização.
Uma prova magistral disso é constatar como a difusão
da palavra globalização foi assíncrona. Por
exemplo, ela chegou muito mais rapidamente ao México do
que à Espanha. O Brasil já tinha a Rede Globo, então
já estava muito pertinho do paraíso global.
Essa foi só uma outra historinha para ilustrar a confusão
que existe em relação a uma linguagem global. Há
quatro anos, lancei um livro que se chamava La mondialisation
de la communication. Em espanhol, quando foi publicado, chamava-se
La mundialización de la comunicación. Em italiano,
La comunicazzione global. E no Brasil, A globalização
da comunicação. O incrível foi que, apesar
de tudo o que dizemos sobre os Estados Unidos, a editora norte-americana
foi a mais inteligente. Me escreveram e disseram: "Olha,
nós não queremos uma palavra tipo worldisation,
nem globalization. Isso é um barbarismo e já estamos
cansados de títulos e artigos que usam a palavra "globalização".
Então, chamaram o livro Net Working World, com o sub-título:
1974 a 2000. Ou seja, o momento a partir do qual surgiram as comunicações
internacionais a longa distância e o ano 2000, que foi justamente
o ano da publicação do livro nos Estados Unidos.
O problema para nós, portanto, é o de construir
e reconstruir uma linguagem que possa corresponder ao nosso projeto
de reconstrução do mundo. Porque as palavras foram
pervertidas, de certa forma, foram perturbadas, começando
pela palavra liberdade, a palavra democracia, a palavra cultura.
A recuperação de uma linguagem, a reconstrução
de uma linguagem, é a única forma de lutar contra
o esvaziamento e o empobrecimento do nosso vocabulário
quando falamos sobre o processo de integração das
culturas e das sociedades diante de um conjunto mais importante
e dito universal. Essa seria a única forma de lutar contra
o processo de amnésia que está em andamento.
Gostaria de compartilhar com vocês algumas reflexões
com relação à construção da
via que levou a cultura ao mercado e ao centro das discussões
em relação à organização mercantil.
Esse é um problema muito antigo. Há um elemento
histórico que acho muito importante para que possamos perceber
de que forma chegamos à situação que vivemos
hoje.
No século XVII, no era do iluminismo, falava-se muito
numa linguagem universal. E construíam-se línguas
universais. Hoje, obviamente, a linguagem universal é a
informática. E surgem também teorias matemáticas
da comunicação. O conceito de comunicação
foi dissociado, separado, do conceito de cultura. A noção
de comunicação surgiu como uma tentativa de medir
a quantidade de informação, sem a menor preocupação
em relação ao emissor ou ao receptor - ou seja,
os agentes de cultura. Vou citar um exemplo muito simples para
esclarecer o que estou querendo dizer. Na Unesco, a delegação
francesa proibiu os seus tradutores de traduzirem mass comunication
midia por meios de comunicação de massa. São
forçados a traduzir por difusão ou informação,
pois a palavra comunicação pertencia a uma outra
herança cultural, que era a norte-americana. Me parece
fundamental a forma pela qual foi estruturada a noção
de comunicação e informação, em torno
de uma noção matemática de organização
do mundo. E, de certa forma, isso é um desvio do ideal
do iluminismo.
Um segundo momento surge quando os especialistas das organizações
internacionais encarregadas do desenvolvimento definiram a cultura
a partir de indicadores sócio-culturais ou econômicos,
a partir de um conceito de desenvolvimento que traduzia o progresso,
ou a melhoria, do produto per capita. A partir daí, a cultura
finalmente foi subdivida em indicadores: quantidade de salas de
cinema por cada 100 habitantes, quantidade de jornais, quantidade
de televisões, rádios etc. É aí que
surge a teoria da modernização do desenvolvimento.
Ou seja, o desenvolvimento das chamadas sociedades primitivas,
que passavam a ser denominadas subdesenvolvidas. Esse foi um momento-chave.
E, contra essa teoria, nasceu o movimento dos países não-alinhados,
em Bandung, em 1955. E, na década de 70, em nome de um
reequilíbrio dos fluxos de informação, surge,
na Unesco, a nova ordem informativa internacional.
O terceiro momento é quando a cultura passou a fazer parte
de uma nomenclatura estatística mundial, ou seja, na época
da terceira rodada do GATT, que tinha como objetivo os serviços
- incluindo nessa categoria a noção de cultura,
junto com management, turismo etc. Esse foi o percurso através
do qual a cultura pôde ser legitimada como parte do comércio.
E essa nomenclatura estatística é muito importante,
pois foi a partir daí que se começou a racionalização
do mercado internacional partindo de um elemento cultural fundamental
criado pelo imperialismo moderno: a exposição mundial
de Londres de 1851.
Esse também deve ser um terreno de luta: a classificação
estatística das atividades das sociedades humanas. E, juntamente
com esse conceito eminentemente mercantil da cultura, os produtos
do espírito, nas discussões com os Estados Unidos.
Primeiro, surgiram as discussões sobre a exceção
cultural - que depois se transformou em diversidade cultural,
pois o conceito de exceção cultural tinha uma conotação
especial devido à posição da França.
Depois foi a desregulamentação das comunicações,
que no final das contas é a base, a logística, da
desregulamentação e da desestabilização
total ou global do conceito de cultura.
O segundo ponto refere-se à forma pela qual - a partir
de um campo de resistências múltiplas, contraditórias,
ambíguas e por vezes ambivalentes - foi reconstruído
o pensamento sobre a cultura que nos permite pensar em modelos
de desenvolvimento humano, como diria Aminata, a partir de culturas
singulares. Na década de 70, lutávamos contra o
imperialismo cultural. É verdade que tínhamos um
conceito monolítico, porque essas eram as condições
da luta e era assim que tínhamos que ser, isso nos era
imposto. Mas devemos lembrar que o conceito de imperialismo cultural
surgiu em 1967 no Congresso de Todos os Povos do Mundo contra
o Imperialismo, em Havana. E foi uma resposta dada por escritores,
filósofos e intelectuais, principalmente contra a agressão
que ocorria no Vietnã. Hoje diante de um processo de westernisation,
ou de ocidentalização, ocorre uma renovação.
Observem os discursos do Banco Mundial em relação
a fornecer ao Terceiro Mundo a Internet, de dar o acesso, de dar
computadores para que eles possam ter acesso ao saber universal.
Mas o que é o saber universal, senão poder interpretar,
através da construção dos monopólios
de saber, o mundo a partir do século XIX?
Entendo que a força do pensamento crítico sobre
a cultura provém justamente de ter sido levada em consideração
a chamada "revanche das culturas". Começar a
analisar, não partindo de uma modernidade única
euro-americana, mas a partir de processos de modernidade que têm
multi-centros. Devemos reconhecer também a reivindicação
da singularidade das culturas que se desenvolve hoje num contexto
muito contraditório: poderia ser o retorno às culturas
singulares, poderia ser uma forma de pensar e repensar o universalismo,
uma nova forma de universalismo, mas também poderia ser
uma forma de reflexão sobre si mesmo. Esse é o grande
desafio do século XXI. Espero que neste século XXI
consigamos resolver o que o século XX não conseguiu.
Armand Mattelart
Sociólogo (Bélgica)
Reprodução editada da gravação da
palestra proferida, sem revisão final da expositora.
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