A OMC contra-ataca em silêncio
Derrotada na Batalha de Seattle, a Organização
Mundial do Comércio não desistiu de radicalizar
a globalização, em favor das transnacionais. Em
Genebra, e sem qualquer debate com as sociedades, trama-se agora
a desregulamentação geral de setores como saúde,
educação, meio-ambiente e cultura
Anunciado com grande estardalhaço, o novo ciclo de negociações
comerciais multilaterais da OMC (Organização Mundial
do Comércio) denominado "Rodada do Milênio"
naufragou vergonhosamente em novembro passado, em Seattle. Mas
este fracasso não impediu absolutamente que fossem há
pouco retomadas as negociações sobre o comércio
de serviços, em Genebra, como se nada tivesse acontecido.
Com efeito, elas figuravam no mandato atribuído à
OMC pelos acordos de Marrakech, de 1994. Ora, o que se arquiteta
atualmente, a portas fechadas, com base no Acordo Geral sobre
o Comércio de Serviços (GATT, em inglês),
é exatamente aquilo que havia sido espetacularmente recusado
em Seattle: o confisco, pelas empresas transnacionais, dos novos
setores e a transformação programada dos serviços
públicos em mercadoria.
A ponta de lança desta ofensiva encontra-se na Comissão
Européia. De fato, Bruxelas e o secretariado da OMC esfalfam-se
ao máximo para satisfazer os projetos das grandes empresas:
seja qual for a desculpa, o que está em jogo são
os setores da saúde, educação, meio-ambiente
e cultura. Os meios técnicos de contornar, ou de se contrapor
à vontade dos cidadãos, ou mesmo dos Estados, neste
campo, estão nos textos e já estão sendo
postos em prática em grande medida. Basta visitar o site
da Comissão Européia na Internet para ficar sabendo
que "a participação ativa das indústrias
de serviços nas negociações é crucial
para permitir alinhar nossos objetivos de negociação
com as prioridades das empresas. O GATT não é apenas
um acordo entre governos. É antes de mais nada um instrumento
para benefício do meio financeiro". (1)
Serviços "maduros para a liberalização"
Encarregado europeu do comércio, o comissário Pascal
Lamy não modificou em nada o programa do seu predecessor,
o hiper-thatcheriano sir Leon Brittan, além de ter conservado
na equipe os seus principais colaboradores. Um deles, Robert Madelin,
escreveu recentemente ao diretor-presidente do Barclays Bank,
também presidente do European Services Forum (ESF), para
tomar ciência de suas prioridades (o ESF, criado pela Comissão
Européia em 1998, reúne mais de 80 empresas transnacionais
de serviços).
Madelin pede oficialmente que lhe indiquem os mais importantes
mercados de serviços e que identifiquem os principais entraves
ao comércio nos "setores da construção,
da educação, do meio-ambiente, da saúde,
dos serviços sociais e da comunicação".
E acrescenta: "É desnecessário dizer que a
Comissão dispõe-se a fornecer especialistas idôneos
e documentos preparatórios para qualquer reunião
que o senhor e seus colegas desejem organizar para discussões
setoriais." (2)
Um outro ex-membro da equipe de Brittan, Michel Servoz, sempre
o principal negociador da Comissão para os serviços,
havia declarado, por ocasião de um simpósio organizado
em 1999, que "certos setores parecem-nos de uma importância
crescente, e gostaríamos
de ver aí um nível maior de comprometimento. Trata-se
dos serviços ligados ao meio-ambiente, à construção,
à distribuição, à saúde e à
educação. Nossa pauta (shopping list) é totalmente
similar à dos parceiros do Quadrilátero". (3)
Servoz tinha aliás declarado, em outra ocasião,
que a saúde, a educação e o meio-ambiente
estavam "maduros para a liberalização".
(4)
Sacrifícios para ter acesso ao big deal
Será que nos querem fazer acreditar que a União
Européia teria acesso aos "mercados" da saúde,
educação, meio-ambiente e cultura em outros países,
sem que igualmente abra suas próprias fronteiras nesse
campo? A resposta foi dada pelo próprio Pascal Lamy diante
do U.S. Council for International Business (USCIB): "Se queremos
melhorar nosso próprio acesso aos mercados estrangeiros,
não podemos excluir nossos setores protegidos. É
preciso estarmos prontos para negociá-los se queremos ter
cacife para negociar um acordo global (big deal). Tanto para os
Estados Unidos quanto para a União Européia isto
implica em algumas perdas em certos setores, mas ganhos em muitos
outros, e creio que sabemos, uns como outros, que será
necessário consentir em sacrifícios para obter,
mais
adiante, o que queremos". (5)
O comissário não especifica quais sacrifícios
ele está disposto a consentir em nome dos europeus. Por
outro lado, acrescenta que o investimento também deve constar
do big deal. Entretanto, faz questão de advertir o seu
auditório do USCIB, ponta-de-lança dos norte-americanos
no Acordo Multilateral de Investimentos (AMI), provisoriamente
"sepultado" na Organização para a Cooperação
e o Desenvolvimento Econômicos (OCDE), no fim de 1998: "É
uma carta a ser jogada, porém com infinitas precauções.
Falando francamente, estamos tanto na época do pós-AMI,
quanto na do pós-Seattle. É preciso tirarmos as
lições desses dois fracassos". (6)
Sem dúvida, uma das lições é que
acordos deste tipo são melhor negociados longe dos olhares
curiosos dos cidadãos bem informados. E não é
o secretariado da OMC que dirá o contrário: será
difícil para ele, é claro, proclamar publicamente,
como o faz em uma nota interna, que um dos principais objetivos
do GATT é o de reduzir os salários!
"Importação" de trabalhadores
Na verdade, essa nota afirma que "as vantagens mais significativas
do comércio não virão da construção
e da gestão de hospitais, mas da possibilidade de aí
empregar pessoal mais qualificado, mais eficaz e/ou menos custoso
que o que poderia estar disponível no mercado local de
trabalho". (7) Reduzir as remunerações é
a obsessão da OMC: em certos "serviços de meio-ambiente,
tais como o recolhimento do lixo, existe limite ao movimento das
pessoas (...) e exigências de nacionalidade no que se refere
ao pessoal, que impedem as empresas de minimizar os custos do
trabalho por meio de um recrutamento internacional". (8)
O GATT, graças ao acordo sobre o "movimento das pessoas
físicas", também permitirá importar
trabalhadores ao sabor das exigências dos empregadores multinacionais,
ou fazer executar o trabalho "móvel" em outro
lugar. O secretariado da OMC dá, aliás, o bom exemplo.
"A OMC já nos faz economizar muito dinheiro",
diz seu diretor-geral, Mike Moore, ao dirigir-se aos países
membros, "deslocando as traduções. Graças
ao correio eletrônico, apelamos para tradutores que trabalham
em casa em países do mundo todo". (9)
Os artifícios "legais" da liberalização
Como seria possível "liberalizar" os serviços
sensíveis - não somente nos setores da saúde,
da educação, do meio-ambiente e da cultura, mas
também nos correios e nos transportes - sem parecer fazê-lo
e sem chamar a atenção das sociedades, antes que
seja tarde? Existem para isso vários meios técnicos
perfeitamente "legais", desde que se faça a leitura
mais "liberal" possível dos textos do GATT. Basta,
entre outras coisas:
· Reclassificar categorias de serviços incluindo-as
nas listas existentes, tornando-as mais estreitas ou criando sub-categorias.
Dessa forma, assiste-se a uma verdadeira metamorfose das categorias
nos setores onde os governos se "engajaram" menos e
que são precisamente as mais politicamente sensíveis.
Por exemplo, a análise de bases de dados de pacientes,
ou de estudantes, não fará mais parte da saúde,
ou da educação, e sim do "tratamento informático";
a administração dos hospitais, ou - porque não?
- a Previdência Social, é colocada na rubrica "administração",
"contabilidade" ou "serviços às empresas".
· Adotar a abordagem dita "horizontal" e aplicar
certas regras ao conjunto das categorias de serviços, de
países e de modos de abastecimento. Uma regra aprovada,
digamos, para os serviços de contabilidade seria aplicada
então automaticamente ao conjunto dos 160 setores enumerados.
Abrir o mercado num setor equivale a abri-lo em todos os outros,
considere-se ou não a saúde e a educação
como "mercados". A Comissão Européia declarou-se
explicitamente favorável a essa abordagem "horizontal".
· Restringir drasticamente os "regimentos internos"
que qualquer governo teria o direito de estabelecer ou de manter.
O perigoso artigo VI, parágrafo 4º do GATT é
interpretado em seu sentido mais amplo, a fim de que o Conselho
do Comércio de Serviços da OMC possa elaborar as
"disciplinas necessárias" a serem impostas aos
Estados-membros. O objetivo é permitir à OMC erigir-se
em juiz dos regimentos internos em todos os domínios em
que os governos têm a pretensão de fixar normas,
bem como poder qualificá-las de "entraves desnecessários
ao comércio". Estas "disciplinas" também
seriam aplicadas horizontalmente e a OMC decidiria sobre o que
é "necessário" e o que não é
para atingir tal ou qual objetivo governamental. (10)
Interpretação do "rigor legal"
As "disciplinas" que se aplicariam aos serviços
incluem as "medidas referentes aos procedimentos de qualificação,
as normas técnicas e a concessão de patentes",
categorias particularmente amplas e elásticas. Elas serão
interpretadas, como sempre, no sentido mais
favorável à liberalização: seja para
importar - com contratos de duração determinada
(CDD) - trabalhadores considerados "qualificados" pela
OMC, no entanto baratos; seja para permitir a quem quer que seja
abrir clínicas ou escolas, ou para anular normas consideradas
"entraves ao comércio".
Os dispositivos do AMI, caso ele tivesse sido adotado, teriam
permitido a uma empresa processar um Estado, que tomasse "medidas
equivalentes a uma expropriação". Com o GATT,
tal como ele está sendo projetado, bastará provar
que tal medida governamental é "mais rigorosa do que
o necessário" para realizar este ou aquele objetivo
do Acordo. E o artigo VI, parágrafo 4º, vale até
para medidas não discriminatórias em relação
a outros Estados-membros da OMC. Um advogado de empresas experiente
encontrará sempre, em abstrato, o meio "menos rigoroso"
que o escolhido pelo governo em questão, colocando-o assim
na defensiva. Podemos confiar nas empresas transnacionais de serviços
para incentivar - senão financiar - ações
junto ao Órgão de Resolução de Divergências
(ORD) da OMC, a fim de suprimir regimentos internos inoportunos,
inclusive nos setores que um governo crê protegidos.
Hora de um compromisso
Na verdade os governos nada sabem sobre o que lhes está
sendo preparado em Genebra e Bruxelas. O ex-diretor-geral da OMC,
Renato Ruggiero, foi bem claro: "O GATT fornece garantias
no terreno do direito e da regulação bem mais amplas
que o Acordo Geral sobre as Tarifas Alfandegárias e o Comércio
(GATT); o direito de estabelecer-se [uma empresa de serviços
em um outro país] e a obrigação de tratamento
nacional em relação aos fornecedores de serviços
estrangeiros estende o campo do GATT a setores que não
tinham ainda sido reconhecidos antes, como fazendo parte da política
comercial. Sinto que nem os governos nem as empresas tomaram consciência
ainda, plenamente, da extensão destas garantias, do alcance
e do valor dos compromissos existentes". (11)
Por todas estas razões - e ainda por muitas outras - já
é hora dos cidadãos exigirem de seus poderes públicos
um compromisso sem ambigüidade: a saúde, a educação,
o meio-ambiente, a cultura e os serviços públicos
essenciais são campos nos quais a OMC não deve ter
qualquer ingerência e, portanto, onde os governos e os parlamentos
devem conservar seus plenos poderes. Trata-se, pelo menos nesses
setores, de tornar a OMC definitivamente incapaz de prejudicar.
Notas
(1) http://gats-info.eu.int/gats-info/g2000.pl?NEWS=bbb: "The
GATS is first and foremost an instrument for the benefit of business".
(2) Carta de Robert Madelin a Andrew Buxton (ref. DG I/M/RM D(2000),
24/01/2000.
(3) Michel Servoz, "Commentary", GATS 2000: New Directions
in Services Trade Liberalisation (Org. Pierre Sauvé e Robert
Stern), Center for Business and Government, Harvard University
et Brookings Institution Press, Boston/Washington, 2000, p. 537.
Os outros países do "Quadrilátero", além
dos da União Européia, são os Estados Unidos,
o Canadá e o Japão.
(4) Citado no Washington Trade Daily, 04/06/1999.
(5) Discurso de Pascal Lamy, "Lamy Addresses Need for New
WTO Round", perante o United States Council for International
Business, New York, 08/06/2000. Em inglês a expressão
é "bite the bullet", "morder o cartucho",
isto é, aceitar voluntariamente algo difícil.
(6) Ibid.
(7) Secretariado da OMC, " Background Note on Health and
Social Services" (www.wto.org/services/w65.htm).
(8) Ibid.
(9) Discurso de Mike Moore, setembro de 1999 (www.wto.org/wto/speeches/mm6.htm).
(10) Até hoje, sob o GATT, nenhuma medida de um governo,
submetida à prova da "necessidade", sobreviveu.
(11) Renato Ruggiero, perante a Conference on Trade in Services,
reunião de 02/06/1998, em Bruxelas, organizada pela Comissão
Européia.
Susan George e Ellen Gould
Respectivamente sócia-diretora e encarregada de pesquisas
do Transnational Institute (Amsterdam). Susan George também
é presidente do Observatório da Globalização
(Paris) e autora do livro Rapport Lugano (ed. Fayard, Paris, 2000).
(Traduzido por Angela Mendes de Almeida).
Fórum Social Mundial 2001
Biblioteca das Alternativas
Publicado originalmente no Le Monde Diplomatique, julho de 2000
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