Uma entrevista com Vandana Shiva
Dra. Vandana Shiva explica para Rebecca Gordon* e Bob Wing* porque
a globalização e o livre comércio são
novas formas de colonialismo e como estas afetam diversas raças
em todo o mundo.
Você começou sua carreira acadêmica numa área
muito teórica que é a da Física das partículas
e, então, migrou para uma área da ciência
que afeta a vida das pessoas diariamente. Essa mudança
foi gradual ou drástica?
Foram muitas mudanças drásticas. Um grande passo
foi eu ter me envolvido num movimento ecológico na minha
região de origem, o qual visava defender uma floresta no
Himalaia chamada "Chipkhu". Este foi um movimento iniciado
por milhares de mulheres unidas para acabar com o desmatamento
no início dos anos 70, muito antes que a idéia de
salvar árvores se difundisse. Foi uma revolta espontânea,
delineada por mulheres e liderada por mulheres.
Como você provavelmente já sabe, a imprensa norte-americana
trata da globalização como a porta de entrada para
um futuro de prosperidade para todos. Qual sua opinião?
Por eu ser doutora em Física, posso ver claramente que
os sistemas futuros são conseqüência daquilo
que nós vivenciamos no presente. Mas, hoje em dia, a globalização
deixa à margem a grande maioria da população,
tira desta seus direitos democráticos de tomada de decisão
e, como se já não bastasse as limitações
da frágil democracia existente, reduz suas chances ao mínimo
através do totalitarismo corporativo.
Você quer dizer, por exemplo, que a OMC, impossibilita
os países de desenvolver barreiras tarifárias para
prevenir que as importações prejudiquem a produção
local?
A frase "criação de barreiras tarifárias"
soa como se algo indecente estivesse sendo proposto. Toda a linguagem
do livre comércio tem sido formulada através da
mudança de significado de conceitos básicos que
podem ser compreendidos por pessoas comuns, envolvendo-as em uma
nova linguagem em que algumas coisas positivas na sua percepção
se tornem negativas. Entretanto, essas coisas são negativas
somente aos interesses do mercado.
Observe a palavra "proteção". Proteger
sua comunidade, garantindo que suas crianças tenham comida
suficiente, assegurando que os meios de sobrevivência não
sejam roubados dos pequenos agricultores, assegurando que suas
florestas naturais, seus rios, sua terra e sua biodiversidade
seja protegida. Isso não é apenas proteção,
é obrigação. É absolutamente essencial
que protejamos nossa comunidade, nosso meio-ambiente, nosso meio
de vida. Mas "proteção" - que deriva de
uma necessidade política e social e, eu iria mais longe,
moral - foi redefinida pela cultura corporativa como uma categoria
econômica chamada "protecionismo", a qual as pessoas
devem se opor e que deve ser desmatelado. Proteção
não é protecionismo, porque proteção
não pode ser reduzida a um fenômeno de mercado.
As gigantes multinacionais da agricultura têm sido muito
criticadas por modificar geneticamente os alimentos. Um exemplo
é a soja "Roundup-Ready", que pode suportar doses
enormes de pesticida. Agora se está falando em uma nova
e "maravilhosa" criação, o "golden
rice" [arroz dourado], o qual supostamente adicionaria vitamina
A na alimentação das pessoas e protegeria os pobres
da cegueira. O que há de errado com esse novo tipo de arroz?
Eu já tive experiência suficiente com os "milagres"
originados na Fundação Rockefeller. Vou citar algumas
razões sobre o porquê do "golden rice"
não ser um milagre, mas sim um desastre. A Fundação
Rockefeller financiou a "Revolução Verde"
nos anos 60, provocando uma mudança na agricultura mundial,
que passou da subsistência e das bases orgânicas (naturais)
para a agricultura totalmente química e não-sustentável.
Não se produziu mais comida, mas se despediu mais pequenos
agricultores. Condenou países de Terceiro Mundo a uma dívida
permanente. A Índia triplicou seus pedidos de empréstimo
junto ao Banco Mundial somente para suprir a nova ordem química
da agricultura. Os demais ciclos de dívida e ajustes estruturais
subseqüentes foram todos relacionados à criação
de dependência de substâncias agroquímicas
com financiamento do Banco Mundial e da Fundação
Rockefeller. A cada ano que passava, se introduzia uma nova qualidade
de arroz, que durava um ou dois anos até entrar em colapso
devido à aparição de uma praga. Daí
se introduzia uma nova monocultura. Monoculturas fracassadas não
são diversidade! Mas elas são caminhos considerados
ótimos pelas corporações. Primeiro eles nos
venderam as substâncias químicas, depois sementes
que só crescem com o auxílio dessas mesmas substâncias.
Esta é a razão pela qual eles introduziram engenharia
genética. E também o porquê da criação
da soja "Roundup-Ready". O "arroz dourado"
é mais um integrante deste pacote. Minha resposta para
a Fundação Rockefeller é: "Por que vocês
não perguntam para as mulheres do Terceiro Mundo sobre
as fontes naturais de vitamina A - as 200 variedades de verduras
que cultivamos nas nossas hortas e centenas de ervas nativas das
quais extraímos vitamina A? Simplesmente visitem o interior
africano! Não é porque eles não têm
comprimidos de vitamina A que eles não obtêm vitamina
A. Observe a biodiversidade e conte quantas fontes desta vitamina
existem. E, se não podem fazer isso, nós podemos
organizar aulas conduzidas por estas mesmas mulheres para vocês!".
Se eles nos empurrarem o "golden rice" como fizeram
com a Revolução Verde onde eu moro, então
todos os campos do mundo estarão infestados deste mesmo
arroz! E todos os subsídios da Rockefeller e da USAID [Agencia
Norte-Americana para Desenvolvimento Internacional], e do Banco
Mundial vão acabar com nossas fontes de vitamina A enquanto
pregam estar criando-as.
Você pode nos falar um pouco sobre os efeitos da globalização
sobre as minorias nos EUA e as pessoas no Terceiro Mundo?
Considere como, através de patentes, o conhecimento dos
nativos americanos está sendo pirateado em nome da proteção
e prevenção contra a pirataria deste mesmo conhecimento.
O conhecimento dos nossos ancestrais, dos nossos agricultores
sobre sementes, está sendo reivindicado como uma invenção
de empresas e cientistas norte-americanos e sendo patenteado pelos
mesmos. A única razão pela qual isto pode funcionar
é porque, por trás de tudo isso, existe uma estrutura
racista que diz que o conhecimento do Terceiro Mundo e das minorias
não é um conhecimento legítimo. Quando este
conhecimento é roubado por brancos que detêm o capital,
repentinamente a criatividade floresce do nada. Sementes como
a do Basmati , um arroz aromático vindo da Índia
que temos cultivado por séculos nos campos da minha região,
estão sendo reivindicadas como uma nova invenção
da empresa norte-americana RiceTec. As empresas estão roubando
os últimos recursos naturais dos pobres, suas sementes.
Biopirataria funciona sob uma hipótese racista - exatamente
como ocorreu quando os europeus colonizaram o resto do mundo 500
anos atrás. Eles definiram todos os territórios
que não tivessem habitantes brancos e europeus como "territórios
desabitados". O que está acontecendo repetidamente
- como no período da colonização - e que,
ao mesmo passo em que o conhecimento das pessoas e suas criações
estão sendo negadas, estas mesmas estão sendo apropriadas.
Agora, quem cria a riqueza? Na minha opinião, são
os trabalhadores. São as mulheres operárias nas
fábricas nos EUA, as pequenas agricultoras da Índia.
Mas quem está criando a riqueza do ponto de vista racista?
As empresas que roubam isto de nós e aqueles jovens rapazes
brancos na Bolsa de Valores ao especularem com as moedas internacionais.
As patentes são uma réplica do colonialismo, que
agora é chamado de globalização e livre comércio.
As leis de direito de propriedade intelectual do GATT (Acordo
Geral de Comércio e Tarifas) criaram o ambiente perfeito
para que as empresas estrangeiras pudessem ter o monopólio
e o controle total sobre nossa produção alimentícia
através de patentes que transformam variedades de sementes
tradicionais em híbridos patenteados.
Aqui nos Estados Unidos, progressistas foram profundamente encorajados
a compreender a expansão da bem-organizada e criativa oposição
à reunião da OMC em Seattle. O que você acha
que foi realizado aqui?
Eu acredito que duas coisas foram conquistadas. A mais importante
foi que mesmo que as corporações e instituições
digam que a globalização é um fenômeno
natural, ficou provado que esta vem sendo projetada pelas mesmas.
Eles até dizem que assim como o sol nascerá todas
as manhãs, a globalização acontecerá
inevitavelmente. O exercício do poder através dos
protestos de pessoas comuns em Seattle para impedir a rodada de
conversações mostrou ao mundo todo que não
existe nada de inevitável ou natural sobre isso. A OMC
é um projeto político onde os poderosos se reúnem.
Se as pessoas se reunirem de forma organizada, podemos acabar
com esse projeto. A segunda coisa que foi conquistada em Seattle
foi o cruzamento de questões, a organização
de setores cruzados e a organização além
das fronteiras.
O início deste século foi a era das grandes revoluções.
Todas estas revoluções foram sumindo junto com todas
suas conquistas. Os últimos 50 anos de ativismo cidadão
foram baseados em problemas específicos e delimitados:
mulheres lutando pelos direitos das mulheres, ambientalistas lutando
pelo meio-ambiente, trabalhadores lutando por seus direitos como
trabalhadores. Houve uma divisão total. Não existia
nenhuma sinergia nascendo, ainda que todos estivessem agindo.
Não estava aumentando a luta por uma mudança política.
Cada movimento específico tinha que negociar separadamente,
da estaca zero, enfrentando instituições altamente
organizadas e poderosas, as quais coordenavam o sistema de mão-de-obra,
o meio-ambiente, o Sul, os pobres e as mulheres. Eles tinham um
plano muito bem articulado, e nós estávamos todos
fragmentados. Em Seattle nós nos unimos. E mesmo que só
estivessem presentes meia dúzia de agricultores e mulheres
do Terceiro Mundo foram eles que articularam o plano e as questões.
Como aconteceu essa união?
Devido a pelo menos uma década de trabalho anterior a
isso. Houve todo um trabalho de base, alimentado por três
movimentos principais. Primeiro, houve o movimento do Terceiro
Mundo contra o ajuste estrutural dos países proposto pelo
FMI e pelo Banco Mundial. Segundo, os movimentos confrontando
o livre comércio, o GATT e a OMC. Terceiro, os movimentos
de caratér específico que pretendiam criar alianças
para que pudéssemos lidar com o livre comércio e
o ajuste estrutural. Em Seattle, as peças do quebra-cabeças
começaram a se encaixar. Na verdade, nós observamos
o advento de um paradigma alternativo baseado no cidadão
de como nós precisamos organizar a economia, governar os
mercados, qual deveria ser o poder dos cidadãos e qual
o poder dos governos e quais limites deveriam ser impostos às
gananciosas corporações.
E uma percepção de que essa união pode garantir
a efetivação destas políticas?
Absolutamente. E isso é exatamente o que tem sido o trabalho
depois de Seattle. Por exemplo, na Índia nós estamos
trabalhando para que ocorra uma convenção solidária,
reunindo cada um dos movimentos existentes no país - cada
sindicato, cada grupo de agricultores, de mulheres, grupos que
apóiam o meio-ambiente, os que lutam pelas crianças,
cada grupo que luta pela paz. Isso foi possível parcialmente
graças a Seattle, pois as pessoas podem olhar para trás,
para o que foi feito lá, e ver que é de fato possível.
(Entrevista realizada no dia 4 de março de 2000)
Vandana Shiva
Dra. Vandana Shiva é física, ecofeminista, escritora
e líder dos movimentos internacionais contra a globalização
e para futura preservação e desenvolvimento dos
conhecimentos e agricultura dos povos indígenas. Dra. Shiva
publicou centenas de artigos e livros sobre esses assuntos, mais
recentemente A Colheita Roubada: O Contrabando da Provisão
Mundial de Alimentos [Stolen Harvest: The Hijacking of the Global
Food Supply]. Como organizadora, ela fundou e trabalhou junto
a muitos grupos. Em 1991, por exemplo, ela fundou Navdanya, uma
organização de agricultores que protege sementes
nativas cultivadas por povos indígenas.
Rebecca Gordon e Bob Wing
Rebecca Gordon é uma pesquisadora senior do Centro de Pesquisa
Aplicada de Oakland (Applied Research Center in Oakland) e Bob
Wing é o editor da revista ColorLines.
(Traduzido por Clarissa Krieck)
Fórum Social Mundial 2001
Biblioteca das Alternativas
Publicado na revista ColorLines (www.colorlines.com), Verão
2000 (v.3, n.2)
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