A experiência do orçamento participativo transcende
o processo de gestão pública e de planejamento democrático,
resultando num processo político de geração
de consciência e cidadania.
O Orçamento Participativo (OP) é um processo de
democracia direta, voluntária e universal, onde a população
pode discutir e decidir sobre o orçamento e as políticas
públicas. O cidadão não encerra sua participação
no ato de votar na escolha do executivo e do parlamento, mas também
decide prioridades de gastos e controla a gestão do governo.
Ele deixa de ser um coadjuvante da política tradicional
para ser protagonista permanente da gestão pública.
O Orçamento Participativo (OP) combina a democracia direta
com a democracia representativa, uma conquista a ser preservada
e qualificada. A escolha periódica de representantes é
necessária, mas insuficiente, no processo de aprofundamento
da democracia; é preciso combiná-la com as mais
variadas formas de democracia direta, onde o cidadão possa
não só participar da gestão pública,
mas também controlar o Estado. O OP de Porto Alegre e o
processo de implantação do OP pelo governo do Estado
do Rio Grande do Sul são exemplos concretos de democracia
direta.
Outra relação com o Estado
Há uma crise de legitimidade política e fiscal
do Estado contemporâneo. O Estado liberal burguês
em seu estágio neoliberal agravou o processo de exclusão
social, que exige políticas públicas que modifiquem
a distribuição da renda e do poder nas cidades e
nos países, concretizando formas de participação
direta da população nas gestões públicas.
O OP é reconhecido nacional e internacionalmente porque
responde, sobretudo, à crise de legitimidade do Estado
contemporâneo. A nossa experiência aponta também
o caminho para a superação da crise do socialismo
burocrático, respondendo à principal questão
política da decadência e da derrocada do Leste Europeu,
ou seja, a relação autocrática do Estado
com a sociedade.
É importante neste processo que a participação
da população se efetive de maneira livre e universal
nas assembléias públicas do OP. Todo o cidadão,
independente de sua organização partidária,
associativa e credo religioso, tem assegurada sua participação
no processo. Ninguém tem privilégio no processo
de democracia direta e nem lugar garantido nas formas de representação
delegada através dos delegados e conselheiros do OP. Este
princípio universal assegurou, na experiência de
quase onze anos do OP em Porto Alegre, que o processo não
fosse partidarizado e nem dominado por corporações,
permitindo que a vontade da sociedade se expressasse de maneira
plural e universal.
O OP representa a discussão de todo o orçamento
e das políticas públicas. A população
não pode ser subestimada na sua capacidade de gestão,
separando-se apenas uma parte do orçamento para a discussão
e deliberação. É preciso abrir todo o orçamento,
os gastos de pessoal, serviços essenciais, investimentos
e projetos de desenvolvimento, bem como os recursos extra-orçamentários
disponíveis para financiamento através do Banco
do Estado. Desta maneira a população vai aos poucos
se apropriando dos gastos e das políticas públicas,
criando condições para sua participação
efetiva na totalidade da gestão pública.
Na experiência de Porto Alegre, por exemplo, o processo
do OP criou mecanismos concretos de controle sobre a folha de
pagamento, através da formação de uma comissão
tripartite (governo, conselho do OP e sindicato dos servidores
municipais) que passou a discutir e decidir sobre a criação
de novos cargos públicos, fazendo um controle interno e
externo sobre o aumento de pessoal.
Vontade Política e Autonomia
O orçamento público está previsto nas Constituições
Federal e Estadual e nas leis orgânicas municipais como
uma lei de iniciativa do executivo. Ademais, a Constituição
Federal em seu artigo 1º, parágrafo único,
diz: "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes ou diretamente, nos termos desta Constituição"
e no artigo 5º, inciso XVI, estabelece o "direito de
reunião" e inciso XXXIV o "direito de petição
aos Poderes Públicos" do povo brasileiro. Portanto
para que se faça o OP, não se precisa de nenhuma
lei específica, basta a vontade política dos governantes
eleitos nas eleições gerais.
O processo do OP deve ter regulamento, critérios distributivos
e metodologia de planejamento. Mas, este regramento deve ser elaborado
de maneira autônoma pela comunidade e firmado um contrato
social entre o governo e a sociedade. O OP não é
uma obra acabada, perfeita e indiscutível. Nem poderia
ser, pois a avocação da perfeição
seria expressão de autoritarismo e negação
do processo dialético. É com este entendimento que,
todos os anos, o governo e a sociedade devem realizar uma avaliação
crítica do regramento e do processo e cabe ao conselho
do OP - de maneira autônoma (auto-regulamentada) sem a tutela
do executivo e legislativo -, discutir e decidir as mudanças
para sua modernização.
Para que o OP seja um processo efetivo e sério de participação
popular e não meramente consultivo, é necessário
que as decisões tomadas pela população e
governo sejam documentadas e publicadas para conhecimento de toda
a sociedade. Isto possibilitará que a população
faça o acompanhamento e fiscalização da execução
das obras e serviços decididos. Ademais, o governo deve
prestar contas anualmente, possibilitando um controle social efetivo
sobre a gestão do Estado.
Resistências e potencialidades
A oposição dos políticos tradicionais tratou
e trata de impedir de todas as formas a implantação
do OP-RS, ora com medidas judiciais, ora com ações
políticas de caráter populista. A experiência
do OP aplicada na escala estadual assustou a direita e os políticos
clientelistas, que não se conformam com a perda de poder
político e as mudanças na cultura política
da sociedade que este processo engendra.
Mesmo com a situação financeira difícil
herdada do governo anterior, a potência do OP na escala
estadual é muito maior que na escala do município.
O nível de recursos orçamentários e extra-orçamentários
que podem ser potencializados, a partir de uma política
de recuperação financeira do Estado, no médio
prazo, abre a possibilidade de resultados materiais consideráveis
nas políticas e na prestação de serviços
públicos e em projetos de geração de trabalho
e renda.
O OP-RS desencadeou um processo de radicalização
da democracia que terá conseqüências nas relações
da sociedade com todas as esferas públicas do Estado. A
população começa, na medida que discute o
orçamento do Estado, a despertar para a discussão
dos orçamentos municipais. O debate do orçamento
estadual na fase legislativa, através de audiências
públicas da Comissão Planejamento e Finanças,
é uma demonstração deste processo.
Este processo do OP-RS abriu também um espaço de
qualificação das relações entre o
Governo do Estado e as Prefeituras com a participação
e o controle da população. As verbas voluntárias
do governo estadual para políticas em parceria com os governos
municipais passam pelas prioridades estabelecidas no OP-RS e por
critérios objetivos de distribuição regional.
As relações políticas tradicionais e clientelistas
começam a ceder espaço em todos os níveis
para uma nova forma de gestão pública com controle
social.
É importante destacar que este processo de mudança
que o OP-RS abre para a sociedade gaúcha está apenas
no começo. Seu desenvolvimento não será fácil
e nem linear, mas o resultado de muita contradição
e luta, onde o governo e os setores populares deverão ter
a capacidade de buscar aliados no conjunto da sociedade para acumular
ricas e variadas experiências de participação
popular e de projetos de desenvolvimento para o Rio Grande.
Participação popular massiva
A metodologia de planejamento adotada na implantação
do OP-RS 2000 previu a combinação de dois processos
articulados: definição de prioridades gerais de
base regional e de prioridades temáticas para o estado.
Em ambos, a participação do cidadão deu-se
de maneira direta, voluntária e universal nas assembléias
públicas do OP, envolvendo cerca de 190 mil pessoas, que
debateram, propuseram e votaram, deliberando as prioridades de
investimentos, serviços públicos e projetos de desenvolvimento
para o Estado, que se concentraram em agricultura, educação,
saúde e geração de trabalho e renda.
A divisão geográfica do Estado foi feita através
de 22 regiões de planejamento, que são as mesmas
dos Conselhos Regionais de Desenvolvimento (COREDES), que foram
criados por lei estadual, em 1994, com o objetivo de promover
a participação da sociedade, através de entidades
representativas, na discussão sobre o planejamento do desenvolvimento
regional. Nesta base regional, a população foi chamada
a discutir e decidir prioridades de obras, serviços e programas
públicos, nos temas da Agricultura, Assistência Social,
Cultura, Educação, Energia, Trabalho e Renda, Habitação,
Saneamento, Saúde, Segurança, Transporte e Pavimentação.
Esta também foi a referência para a realização
das Assembléias Regionalizadas da Temática do Desenvolvimento
do RS - ATD.
Nos meses de março a junho1999 foram realizadas as Assembléias
Públicas Municipais (APM) nos 467 municípios do
Estado e em mais 30 municípios em fase de emancipação.
Como em alguns municípios, devido o número de habitantes
e sua distribuição geográfica, foram realizadas
mais de uma APM, no total foram realizadas 622 APM's.
Neste espaço de participação popular o cidadão
pode discutir, propor e votar as prioridades de obras, serviços
e programas de cada município. Também foram eleitos
delegados para representar os municípios nas Plenárias
Regionais. Para viabilizar o processo democrático nas assembléias
municipais foi fundamental o uso de uma cédula de votação
e um sistema de computador portátil que permitiu a apuração
dos resultados da votação das prioridades na própria
assembléia, sob a fiscalização direta da
população.
Nas Plenárias Regionais, que aconteceram de junho a julho
de 1999, os delegados dentro de cada tema prioritário sistematizaram
e compatibilizaram as demandas municipais, estabelecendo a hierarquia
regional de prioridades. O critério para essa hierarquização
baseou-se nas notas dadas aos temas priorizados em cada APM. Deu-se
nota 3 para o tema votado em primeiro lugar, nota 2 para o tema
em segundo lugar e nota 1 para o tema em terceiro lugar. Pela
soma dos pontos chegou-se aos temas prioritários.
Na plenária regional, os delegados regionais elegeram
os conselheiros para compor o Conselho do OP-RS e o governo apresentou
a primeira estimativa da receita e os grandes agregados da despesa
para o ano 2000.
As prioridades temáticas e as demandas de obras e serviços
hierarquizadas em cada tema, na base regional, passaram a ser
analisadas pelo governo nas suas viabilidade técnica, legal
e financeira com vistas a elaboração da matriz orçamentária
e do plano de investimentos e serviços. Estas prioridades
constituíram-se no indicador de planejamento para alocação
de recursos nas obras e serviços da base regional.
As três primeiras prioridades gerais da base regional foram,
pela ordem, agricultura (854 pontos), educação (667
pontos) e saúde (579 pontos).
Base Temática de Desenvolvimento
A base temática foi criada para discutir projetos e programas
para o desenvolvimento do Estado, levando em conta recursos orçamentários
e recursos extra-orçamentários disponibilizados
via linhas de crédito do Banrisul, o banco estadual.
Nesta base temática a população foi chamada
a discutir e decidir prioridades de projetos e programas em 8
temas: Agricultura (apoio a agroindústria, crédito
rural, reforma agrária, etc.); Geração de
Trabalho e Renda (apoio a micro, pequena e média empresa,
apoio a cooperativas e associações produtivas de
trabalhadores, primeiro emprego, etc.); Programas de Organização,
Gestão e Fiscalização do Transporte e Sistema
Rodoviário, Hidroviário, Aeroviário e Ferroviário;
Ciência e Tecnologia; Desenvolvimento do Turismo; Programas
de Meio Ambiente e Gerenciamento de Recursos Hídricos e
Saneamento; Ações de Gestão, Tratamento e
Destinação dos Resíduos Sólidos; Ações
de Qualificação no Uso e Ocupação
do Solo; Energia.
Nos meses de maio e junho de 1999 foram realizadas 22 Assembléias
Regionalizadas da Temática de Desenvolvimento do RS (ATD),
uma em cada região do Estado, no município mais
central de cada região, aberta a participação
de todos os cidadãos. Nestas assembléias públicas
a população discutiu e votou temas e programas prioritários
para o desenvolvimento da sua região e do Estado.
Através da metodologia adotada foram estabelecidas prioridades
da temática do desenvolvimento. Na plenária estadual,
entre os delegados temáticos, foram eleitos representantes
para compor o Conselho do OP-RS, aos quais o governo apresentou
a estimativa da receita e os grandes agregados da despesa para
o ano seguinte. Estas plenárias aconteceram no mês
de julho de 1999.
As prioridades entre os 8 temas apresentados e os programas hierarquizados
em cada um, na base temática do desenvolvimento, passam
a ser analisados pelo governo do ponto de vista dos recursos disponíveis.
Estas prioridades temáticas passam a ser o indicador de
planejamento para alocação de recursos orçamentários
e extra-orçamentários nos programas e projetos da
temática de desenvolvimento do estado.
As três primeiras prioridades gerais da base temática
foram, pela ordem, agricultura (54 pontos), trabalho e renda (48
pontos) e transporte (11 pontos).
Composição do Conselho Estadual do OP-RS
No mês de julho de 1999, após concluídas
a fase das plenárias regionais e a plenária temática
estadual de delegados, foi dado posse aos conselheiros que compõem
o conselho estadual do OP (COP-RS). Os conselheiros têm
a competência de discutir e deliberar a proposta orçamentária
a ser enviada até dia 15 de setembro à Assembléia
Legislativa. Têm ainda a atribuição de discutir
e decidir o plano de investimentos e serviços do OP. Os
conselheiros têm mandato de um ano e realizam trabalho voluntário
não remunerado.
O COP-RS é composto por 204 membros. 69 conselheiros são
distribuídos entre as 22 regiões, proporcionalmente
à população de cada região; 69 outros
conselheiros são distribuídos, entre as 22 regiões,
proporcionalmente à participação popular
nas assembléias públicas municipais do OP de cada
região sobre o total da participação popular
no estado, atendendo desta maneira o princípio da participação
popular no processo da democracia direta; mais 44 conselheiros,
2 por região, são indicados pelos conselhos regionais
de desenvolvimento (COREDES), que no processo de implantação
do OP-RS firmaram um termo de cooperação com o governo;
e, por último, mais 22 conselheiros foram indicados pela
área temática do desenvolvimento do estado. O governo
participa do COP-RS, sem direito a voto, com 2 representantes,
o coordenador (secretário especial) do Gabinete de Orçamento
e Finanças (GOF) e a coordenadora (secretária especial)
do Gabinete de Relações Comunitárias (GRC).
Matriz Orçamentária e Plano de Investimentos
No mês de agosto de 1999, o Gabinete de Orçamento
e Finanças (GOF), a partir dos indicadores de planejamento
resultantes das prioridades da base regional, das prioridades
da base temática do desenvolvimento do estado, das necessidades
do governo para manter os serviços essenciais e projetos/obras
em andamento, considerando a estimativa da receita, elaborou a
primeira matriz orçamentária. Esta matriz apresenta
uma distribuição detalhada dos gastos de pessoal,
despesas correntes, despesas de capital, serviço da dívida,
reserva de contingência, para cada órgão do
Poder Executivo e inclusive dos outros poderes (Legislativo, Judiciário
e Ministério Público). Após ampla discussão
e deliberação dentro do governo, a matriz orçamentária
e a proposta do plano de investimentos e serviços (PI)
foi levada a discussão no COP-RS. Ela foi discutida pelo
conselho entre a segunda quinzena de agosto e a primeira quinzena
de setembro de 1999, sendo em seguida levada para discussão
nas 22 regiões com os delegados regionais e temáticos.
A discussão e elaboração do PI, além
das prioridades decididas pela comunidade, leva em conta critérios
progressivos de distribuição dos recursos entre
as regiões, considerando que as regiões do estado
não são iguais em superfície, população,
carência dos serviços públicos e infra-estrutura.
No dia sete de setembro de 1999, o COP-RS, reunido em Porto Alegre,
discutiu e deliberou a proposta orçamentária consolidada
da Administração Direta e Indireta (matriz orçamentária
e PI), no valor de R$ 8,8 bilhões para o ano 2000, contendo
gastos de investimentos da ordem de R$ 751 milhões. No
dia 15 de setembro de 1999, o Governador, o Vice-Governador, secretários
de estado, conselheiros e delegados do OP-RS e cerca de 5 mil
pessoas entregaram a proposta orçamentária à
Assembléia Legislativa.
Gestão democrática e construção de
consciência
Nenhum projeto do governo, no ano 1999, foi tão debatido
pelo legislativo como a proposta orçamentária-2000.
A própria Assembléia Legislativa, por um lado influenciada
positivamente pelo processo de participação popular
desencadeado pelo OP-RS e, por outro lado, por setores da oposição
que se contrapunham OP-RS, criou o chamado Fórum Democrático.
Neste contexto, a Comissão de Planejamento e Finanças
da Assembléia Legislativa realizou 22 audiências
públicas, com a participação de 7.549 pessoas,
que mesmo não tendo caráter deliberativo (as pessoas
não votavam nas reuniões), possibilitou um rico
debate entre deputados, governo e sociedade que reafirmou as prioridades
da proposta orçamentária/2000 e consolidou o OP-RS
como uma nova forma de gestão pública.
Finalmente, no dia 29 de novembro de 1999, o parlamento gaúcho
aprovou por 50 votos favoráveis, nenhum contrário
e quatro abstenções, o primeiro Orçamento
Participativo do Estado do RS. Foram aprovadas somente 224 emendas
das 1.276 emendas apresentadas por deputados (415), populares
(177) e de comissão (684).
A experiência do OP transcende o processo de gestão
pública e de planejamento democrático, resultando
num processo político de geração de consciência
e cidadania.
Na implantação do OP-RS existe um episódio
que ilustra de maneira exemplar o papel da cidadania neste processo.
Em plena discussão da comunidade das prioridades para o
orçamento/2000, um deputado federal entrou na justiça
para impedir a continuidade do OP-RS. A justiça, mesmo
não julgando o mérito da ação impetrada,
concedeu uma liminar que impedia o governo do estado de dar infra-estrutura
para as reuniões do OP. Neste momento, os delegados do
OP, prefeitos municipais, organizações populares
e cidadãos em geral passaram a organizar as reuniões
num processo de auto-organização da sociedade. Como
resultado deste processo foi criado pelas entidades populares
e partidos políticos o Fórum Gaúcho em Defesa
da Participação Popular. OP-RS recebeu, assim, seu
batismo de fogo e a sociedade deu um salto de qualidade no seu
processo de organização social independente do Estado.
Ubiratan de Souza*
Ubiratan de Souza é economista e Secretário Especial
do Gabinete de Orçamento e Finanças do Governo do
Estado do Rio Grande do Sul
Fórum Social Mundial 2001
Biblioteca das Alternativas
Texto publicado no jornal Em Tempo.
|