O tema proposto: "Como traduzir o desenvolvimento científico
em desenvolvimento humano?", me parece conter implicitamente
uma confusão muito comum em nossos dias, que interessa
à grande tecnocracia, que hoje comanda o mundo. O grande
establishment tecnocrático, ou seja, o conjunto das grandes
transnacionais, deseja instituir, em nível global, uma
espécie de governo tecnoditatorial, um poder que não
se exerce pela repressão - como ocorria nos países
comunistas - mas pela confusão, pela boçalização
das massas através dos meios de comunicação
e, sobretudo, pelas infra-estruturas tecnoburocráticas
cada vez mais envolventes, das quais não há como
escapar. Querem nos fazer crer, em primeiro lugar, que a ciência
é fria, que a ciência não tem relação
alguma com emoções, com ética, com moral,
com religião. Depois querem que acreditemos que ciência
e tecnologia são praticamente sinônimos. Se aceitarmos
que a ciência é emotivamente fria, que nada tem a
ver com moral, ética e religião, então a
tecnologia também é fria. E se nós cidadãos
protestamos contra uma nova infra estrutura tecnológica
que nos está sendo imposta e que nos oprime, então
seremos acusados de sermos emotivos, saudosistas, de querermos
voltar para a Idade Média ou, pior ainda, de querermos
voltar para a Idade da Pedra.
Ora, a ciência não é fria. O que é
a ciência? A ciência é o diálogo limpo,
absolutamente honesto, com um grande mistério. O mistério
da existência do cosmos, da nossa existência. Podemos
chamá-lo de mistério, podemos chamá-lo de
cosmos, podemos chamá-lo de universo, se quisermos podemos
chamar de Deus, essa é uma questão simplesmente
semântica. Ora, a ciência parte do princípio
de que esse grande mistério é racional, de que ele
se baseia em leis universais, imutáveis e intransgredíveis.
Leis que desejamos descobrir até onde seja possível,
pois sabemos que nunca poderemos chegar em um termo, no qual todo
o universo tenha sido decifrado. Sempre, cada nova descoberta
nos mostra novos mistérios. Mas o fundamental é
que a ciência se baseia numa decisão ética,
na decisão de dialogar de forma limpa com o grande mistério.
Na ciência não há mentira, não há
trapaça, se alguém que se diz cientista enganar,
mentir, falsificar dados, então, por definição,
ele não é cientista.
Mas, o que é a técnica? A técnica utiliza
os conhecimentos que este diálogo limpo conseguiu arrancar
do grande mistério para fazer artefatos, fazerem instrumentos.
Um instrumento é sempre um ato político, por pequeno
que seja, pois um instrumento tem como alvo satisfazer uma vontade,
pode ser a vontade do inventor, a vontade de seu patrão,
a vontade de seu governo, de seu partido, de sua igreja. Mas é
sempre um ato político. Portanto, nem a ciência é
fria nem muito menos a técnica é fria. E aí
temos que distinguir entre técnica e tecnologia. A técnica
tem que se ater 100% às leis da natureza. Se aquele 747
que está voando lá em cima, a uns milhares de metros
de altura, a 900km/h, atravessando continentes e oceanos, se ele
não seguir estritamente as leis da física, ele cai.
No entanto, a tecnologia, ou seja, a política da técnica,
está cheia de trapaças e mentiras. Vejam só
os automóveis que estão estacionados aí fora,
a maioria japoneses, modelos que mudam só por mudar, para
fazer com que eu, que estou com um carro de cinco anos, me sinta
mal com ele e ache que tenho que comprar um novo. Apenas vou mencionar
uma conversa que tive alguns anos atrás, na Alemanha, com
um engenheiro de uma indústria automotiva: "Cara,
esses carros de hoje estão todos enferrujados, será
que vocês não podem fazer um aço melhor? Eu
tenho lá no meu jardim um carrinho de mão que está
com cinquenta anos e a ferrugem está pequena e não
estraga. Por que estes carros tem que enferrujar em dois anos?".
E então ele respondeu: "Em se tratando dos motores,
dos distribuidores, dos pneus, do arranque etc., a parte mecânica
nós fazemos o melhor que podemos. Nós não
queremos que uma senhora que não entende de carros fique
na estrada. Agora, se em dois anos ela ver ferrugem por todos
os lados ela vai dizer para o seu marido - tá vendo, chegou
a hora de comprar um carro novo." Essa é a política
da obsolescência planejada, as coisas são feitas
para não durar. Isso não tem nada a ver com o atendimento
das reais necessidades humanas, isso tem a ver com o atendimento
das necessidades financeiras dos poderosos.
É contra isso que nós temos que nos levantar.
Grande parte do que gostaria de dizer está dito, por outro
lado, a economista chilena Rayen Quiroga Martinez apresentou muito
bem as idéias de Harlen David, grande economista americano
da visão ecológica. E também as idéias
de Vatzeca, o grande crítico da tecnologia moderna na Alemanha.
Se nós queremos realmente contestar o que está acontecendo
aqui, então, nós temos de explicitar o paradigma
deles, e é o que foi feito até aqui, foi explicitado
o que deveria ser. Sendo assim, vou me concentrar, ao contrário,
naquilo que é.
Acredito também ser importante dizer o que é esta
ideologia que nos impuseram, e que todos os governos estão
aceitando, e nos perguntar : por que é tão perigosa
e está nos levando ao desastre? Na realidade, o que nós
vivemos hoje é uma nova religião. O pensamento econômico
moderno é uma religião fanática, messiânica,
que tem uma força de convicção que nenhuma
outra religião tem ou nenhum outro movimento teve e que
já conseguiu o que o cristianismo ou o islamismo não
conseguiram. Conseguiu conquistar o planeta todo. A última
ilha do Pacífico já está contaminada por
este pensamento. Um dogma básico imposto por essa ideologia
é o de que tecnologia é sempre desenvolvimento.
Se em algum lugar do mundo ainda há pessoas dormindo no
meio do mato, dizem: "Meu Deus, que atraso!", "Nós
temos que civilizá-los". Mas se perguntam se essa
gente é mais feliz do que eles? Ou se simplesmente é
diferente? Como podemos ver, essa religião herdou do cristianismo
o seu vício mais absurdo, ou seja, a mania da evangelização:
"Nós temos que converter todo mundo, pois nós
somos os únicos que temos razão".
Então, quem não aceitou ainda esse ponto de vista
está errado e atrasado. Disto decorre a divisão
do mundo em países adiantados e atrasados, desenvolvidos
e subdesenvolvidos, ou em desenvolvimento, para não ser
ofensivo. Como se todo o mundo já quisesse o que eles querem.
E muita gente do nosso lado aceita essa linguagem, essa semântica.
Aí está o erro, nós temos que mudar inclusive
a semântica : existem pessoas que vivem em países
ricos e países pobres. E temos também de notar que
os países que hoje são pobres não foram sempre
pobres, foi o colonialismo, o que hoje é chamado de progresso,
que os empobreceu. Pena não podermos nos alongar aqui sobre
o método utilizado pelos britânicos para tomar conta
da Índia, sobre como eles corromperam meia dúzia
de Marajás e depois destruíram a agricultura camponesa
e o artesanato para poder fazer grandes monoculturas de exportação
(como as plantações de soja, aqui no Brasil), que
não tem nada a ver com progresso. Não tem nada a
ver com o bem estar da população.
Sendo assim, temos de desmistificar este paradigma. E o dogma
básico desse paradigma de que tecnologia é sempre
desenvolvimento, de que a tecnologia nunca está pronta,
nunca é suficiente. Se temos um avião que voa a
1000 Km/h, então temos de ter um que voe mais de 1000Km/h.
Tomemos como exemplo este 747 que voa com 300 pessoas, já
estão construindo o A3X que vai carregar 800 pessoas. Não
há limites. Tudo isso devido ao fundamento básico
desta religião, já mencionado aqui, a idéia
de que uma economia só está sadia se ela cresce.
Eu me lembro, na reunião da Eco 92, quando conversava com
Gro Harlem Brundtland, a primeira ministra da Noruega, que era
mentora daquela reunião. Ela concordava que o crescimento
sustentável é um absurdo. A economia não
pode crescer sempre, não há crescimento eterno,
isso é impossível.
No entanto, devemos ainda levar em consideração
a forma danosa pela qual se mede esse crescimento. O crescimento
econômico segundo o pensamento convencional é esse
que todo mundo aceita, que Fidel Castro também aceita,
o crescimento medido pelo PIB. Mas o que é o PIB (Produto
Interno Bruto)? Vejamos primeiro a forma como a contabilidade
é feita por qualquer comerciante. Em qualquer empreendimento,
fazemos um balanço cuja forma é determinada pelo
governo para que os impostos possam ser cobrados. De um lado adicionam-se
todas as entradas e, de outro, descontam-se todos os gastos. Faz-se
ainda a amortização dos equipamentos. E, somente
quando sobra alguma coisa no final de todas essas operações
é que se considera ter havido progresso/lucro. Mas como
o governo faz as contas quando ele nos apresenta o PIB? Ele simplesmente
soma tudo, entradas e gastos, e não desconta nada. Por
exemplo, quando nós brasileiros demolimos montanhas inteiras
lá em Carajás e destruímos 3.000Km (quadrados)
de Floresta Amazônica para fazer alumínio, o PIB
brasileiro soma as divisas que nós ganhamos na exportação
de alumínio, mas em lugar nenhum desconta o buraco que
ficou na montanha. No caso do genocídio dos índios,
no Tucuruí, da marginalização de 15.000 moradores
que foram todos para as favelas de Santarém, nada foi descontado.
É como se eu fosse no meu banco, fizesse um saque na minha
conta, esbanjasse esse dinheiro e saísse dizendo que estou
mais rico. Eu estou mais pobre! O mínimo que nós
devemos exigir dos nossos governos, e nem precisamos falar de
ecologia, é que façam um balanço decente,
um balanço no qual também se desconte aquilo que
perdemos. Imagine se o dono do bar fizesse a conta que o governo
faz, então, se ele comprou um barril de chope a preço
X, ele fatura 2X na venda dos chopes e, somado tudo, o X com os
2X, mais o custo do garçom, da luz, da água, do
aluguel, daria uma soma muito bonita! Da mesma forma, se ele comprasse
o chope a 2 e vendesse a 1, sua soma daria 3. Sendo assim, ele
poderia estar quebrado sem saber. Por incrível que pareça
esta é a conta que todos os governos fazem. Conta que interessa
ao banqueiro, porque o banqueiro ganha dinheiro sempre, não
importa se o dinheiro é seu ou de fora. Mas que não
interessa a nós. Temos que exigir do governo um balanço
decente, no qual também entrem os descontos. Mais um detalhe,
uma vez que o PIB soma tudo, quando cai um avião, o PIB
cresce. Se cai duas vezes um 747, o PIB sobe duas vezes, 121 milhões
de dólares, primeiro no seguro, depois na compra de um
avião novo, mais todos os gastos com a procura de vítimas
e de destroços. Dessa forma, quanto mais aviões
caírem, melhor para a conta dos economistas.
Vejamos agora o absurdo deste pensamento em relação
ao mercado: desde o colapso dos regimes comunistas do Leste Europeu,
fixou-se que as forças do mercado resolveriam tudo. As
forças do mercado iriam, cada vez mais, encher as prateleiras
de coisas boas. É verdade que as forças do mercado
são um mecanismo cibernético, que pode levar a um
equilíbrio entre forças opostas, um equilíbrio
que seja ao mesmo tempo humano e ambientalmente desejável.
Mas somente se o mercado não for manipulado. E o que observamos
é que os mercados hoje são todos manipulados. Por
exemplo, o mercado agrícola é totalmente manipulado
de maneira a acabar com todos os pequenos agricultores, o que
está acontecendo na Espanha, na França, em toda
parte.
Além de manipulado, o mercado é cego. Tomemos os
pobres, como aquele pobre diabo que morre de noite nas ruas de
Calcutá e cujo corpo é carregado pelo carro do lixo
na manhã seguinte. Toda fortuna dele consistia naqueles
trapos sujos humildemente apresentados, ele tinha tremendas necessidades,
mas ele não tinha demanda, e o mercado não vê
necessidades, o mercado só vê a demanda expressa
em dinheiro. Assim, quem não tem dinheiro não está
presente no mercado, ou seja, os pobres não estão
presentes. É por isso que a grande tecnocracia quer a globalização
dos mercados porque, dessa maneira, quem tem força pode
comprar aquele último grão de milho do mais pobre,
que não tem demanda, não tem dinheiro, não
tem nada. Dessa forma, os pobres vão ficar cada vez mais
pobres e os ricos cada vez mais ricos. Mas é inútil
repetir isso, todo mundo já sabe.
As forças do mercado assim como se apresentam, também
têm conseqüências para as gerações
futuras. As gerações futuras também não
estão presentes no mercado, não têm como protestar.
Imaginem se as pessoas que vão nascer daqui a cinquenta,
cem anos, tivessem palavra, tivessem força nos nossos atuais
mercados? Quanta coisa não mudaria.
E, por fim, o mercado é cego para as gerações
futuras. O mercado é cego para a criação.
Para esse fantástico processo sinfônico que é
a emoção orgânica que nos deu origem junto
com as outras espécies. Da forma como o mercado está
organizado hoje, ele destrói não somente a justiça
social, ele destrói a própria sobrevivência,
destruindo o que há de mais bonito neste planeta e que
o distingue dos demais: seu grande processo vital que já
vem de 13,5 bilhões de anos. Isso nós estamos destruindo.
Dessa forma, se nós quisermos contestar todo esse processo,
temos de desmistificar o paradigma que lhe é inerente e
levar em conta que muita gente não é contra este
paradigma.
José Lutzemberger
Fundación Gai
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