Sommaire
A cada ano, em meados do segundo semestre, colhe-se a safra maior
de relatórios e manifestações de toda espécie
sobre a economia global. Não por acaso, o fenômeno
ocorre nas vizinhanças do encontro, em Washington, entre
FMI e Banco Mundial (no qual, evidentemente, o G-i da ocasião
comparece com destaque). Instituições multilaterais,
think-tanks, lobbies e órgãos da imprensa; balanços
do ano em curso, propostas para as questões relevantes,
palpites e previsões quanto às perspectivas futuras:
ruidosamente, o mundo pensa-se a si próprio.
A recorrência do fenômeno não é o único
fator a determinar certa monotonia. Ainda que as vozes sejam muitas,
cada uma delas em essência repete, na forma e no conteúdo,
suas intervenções passadas. O FMI e o Banco Mundial
hão de congratular-se a si próprios, e um ao outro;
na prestação de contas aos quotistas, afirmarão
sempre terem feito o melhor possível nas circunstâncias
vigentes. O BIS manterá a compostura que se espera de banqueiros.
Em seus surveys anuais, o Financial Times será circunspecto,
enquanto o Economist preservará o monopólio da mescla
peculiar entre conservadorismo e wit britânico. Mas, para
além do estilo e das idiossincrasias próprios a
cada instituição, a monotonia é reforçada
pelo fato de que, afinal, essas vozes harmonizam-se para compor
o arco estreito das opiniões hegemônicas.
Uma instituição, porém, desafina o coro
dos contentes. Faz isso sistemática e teimosamente, a despeito
da quase total indiferença com que é recebida sua
contribuição. Trata-se da UNCTAD, que, também
em meados do segundo semestre, divulga seu Trade and Development
Report (TDR).
O objetivo deste texto é resenhar o TDR-99, mostrando
brevemente como se insere no esforço de pesquisa e reflexão
que a UNCTAD tem desenvolvido acerca da ordem econômica
internacional. Pretende-se, com brevidade, indicar que, com esse
relatório, a UNCTAD como que conclui um painel abrangente
dessa ordem; tal painel é também a base para uma
escalada de suas críticas e para a reivindicação
das bandeiras originais da instituição.
A respeito do FMI e do Banco Mundial, pode-se encontrar uma infinidade
de teses, livros e artigos. Há trabalhos de todos os tipos:
em tons ora críticos, ora laudatórios, discutem-se
a origem e a evolução, a institucionalidade, a tomada
de decisões, a intervenção em conjunturas
específicas. De fato, é razoável que assim
ocorra: estas duas instituições têm se mostrado,
ao menos num certo sentido, "eficientes": são
think-tanks responsáveis pela coleta e interpretação
de grande massa de dados; são fóruns em que políticas
são, se não definidas, ao menos sacramentadas; e
são também instrumentos mediante os quais a execução
dessas políticas - macro ou microeconômicas - vem
a ser imposta aos países necessitados de seus recursos.
Tal "eficiência", por outro lado, nada mais é
do que a contrapartida do caráter "aristocrático"
dessas instituições, constitutivamente assimétricas:
os países ricos concentram as quotas e portanto os votos,
podendo deliberar, sem maiores constrangimentos, sobre as políticas
a serem adotadas.
A UNCTAD, por seu turno, é uma instituição
que, sendo parte da ONU e multilateral como o FMI e o Banco Mundial,
apresenta como particularidade o caráter democrático:
os atuais 188 países-membros têm igual participação,
independentemente de seu peso econômico relativo. Sendo
assim, não poderia ela aspirar à "eficiência"
facultada pela concentração do poder político
nas mãos dos detentores do poder econômico. E isso
mesmo que seu mandato incluísse atribuições
executivas de relevo, o que não é o caso. Os países
desenvolvidos, como é sabido, tendo resistido inicialmente
à própria criação da UNCTAD em 1964,
lutaram por mais de duas décadas para conter as iniciativas,
lideradas pelo Grupo dos 77, no sentido de convertê-la em
fórum privilegiado para a negociação da chamada
Nova Ordem Econômica Internacional. A partir da desarticulação
do bloco dos países em desenvolvimento, em meados dos anos
80, a UNCTAD passa a operar, fundamentalmente, como órgão
de pesquisa e assessoria. O que não é pouco: afinal,
ela mantém-se como um dos poucos think-tanks - e talvez
a única instituição multilateral de caráter
global - a sustentar uma reflexão abrangente sobre o problema
do desenvolvimento, rigorosamente nos moldes da tradição
keynesiana e estruturalista que a marca desde sua origem.
Os relatórios da UNCTAD, de forma geral, compõem-se
de duas partes básicas. De um lado, há a habitual
análise da conjuntura econômica recente; desse ponto
de vista, existe uma perceptível diferença na fundamentação
teórica, mas não nos objetivos, em relação
a relatórios de outras instituições. De outro,
e ocupando a maior parte do texto, há uma ou duas seções
contendo discussões de mais fôlego. Enquanto a análise
da conjuntura revela a influência do pensamento keynesiano,
esta segunda parte, até mesmo pela própria amplitude
dos temas discutidos, lança mão de um instrumental
muito mais amplo, pertinente ao campo da teoria do desenvolvimento.
É aqui que a instituição explicita, de forma
mais clara, sua contribuição para um "sistema
de economia política" bastante próximo daquele
originariamente desenvolvido no âmbito da CEPAL. Se, como
lembra Bielschowsky (1998), os sistemas de economia política
são organizados em torno a princípios normativos,
aqueles mais característicos da UNCTAD parecem ser os seguintes:
· a integração dos países em desenvolvimento
à economia internacional é em si desejável,
desde que atenda a uma série de requisitos:
· deve ocorrer fundamentalmente por meio do comércio
internacional, e não mediante fluxos de capital, sejam
eles investimentos diretos, de porta-fólio ou empréstimos;
· a integração comercial deve ser negociada
de forma a garantir aos países em desenvolvimento acesso
preferencial aos mercados dos países desenvolvidos;
· o escopo e o ritmo dessa integração devem
ser administrados por medidas de política econômica
definidas no âmbito de cada país em desenvolvimento;
· os objetivos de convergência em relação
ao nível de renda dos países desenvolvidos não
são garantidos automaticamente pela operação
dos mercados; como regra geral, não é possível
prescindir da intervenção estatal sobre os mercados.
Tais princípios orientam a escolha dos temas e o enfoque
dos estudos apresentados nos relatórios. Nos últimos
anos, constata-se a presença de algumas vertentes principais
(ver Quadro ao final do texto). Não é surpreendente
que uma delas seja o acompanhamento das negociações
em torno ao comércio internacional e dos resultados dos
processos de liberalização comercial. Uma segunda
vertente diz respeito a questões ligadas às finanças
(financiamento e poupança, liberalização
financeira, crises financeiras...). E uma outra linha de pesquisa
consiste na análise de grupos de países, segundo
um corte regional ou econômico; aqui, chama a atenção
a ênfase na experiência do Leste-Asiático,
retomada em várias edições, sem dúvida
por representar, na visão da UNCTAD e de muitos heterodoxos,
um desvio significativo (ao menos até recentemente) em
relação às propostas ortodoxas para os países
em desenvolvimento, e possivelmente um modelo para estes.
Uma descrição circunstanciada das várias
contribuições da UNCTAD a respeito desses temas
fugiria ao escopo desta resenha. Entretanto, até mesmo
para situar adequadamente as contribuições do TDR-99,
é conveniente recuperar alguns dos traços mais marcantes
da visão da UNCTAD quanto às características
fundamentais da economia contemporânea.
Ao longo das várias edições do TDR, é
apresentada uma visão bastante abrangente do cenário
econômico global, sem limitar-se àqueles temas de
interesse direto dos países em desenvolvimento. Isso, a
meu ver, não se deve apenas ao fato de que, dada a crescente
interdependência entre os países, se torne cada vez
mais difícil empreender uma análise de caráter
parcial. Afora isso, não se deve esquecer que, devido ao
próprio isolamento da instituição, acima
referido, cabe a ela o ônus de articular um discurso alternativo
ao hegemônico; deve responder, ponto por ponto, a um interlocutor
onipresente, cujo discurso articula-se por si próprio,
como que sem esforço, beneficiando-se de imensas economias
de escala possibilitadas pela rede de instituições
de ensino e pesquisa hegemonizadas pela visão liberal.
A UNCTAD, na medida em que busque conferir a sua retórica
um mínimo de penetração, deve procurar demonstrar
o interesse comum ao "Norte" e ao "Sul" em
empreender certas reformas estruturais e correções
da política econômica.
Para a UNCTAD - como, de resto, para muitos outros analistas
- o "período pós-Bretton Woods" é
caracterizado, fundamentalmente, pela liberalização
financeira global. Na visão liberal, tal fato simplesmente
restitui ao capitalismo algo que lhe é de direito, e que
lhe fora indevidamente subtraído, primeiro pela instabilidade
política no período entre-guerras, e depois pelo
ativismo de corte keynesiano, predominante ao final da Segunda
Guerra. A UNCTAD, por seu turno, filia-se ao conjunto de tradições
heterodoxas (das quais a keynesiana é somente um exemplo)
para as quais a constituição de uma ordem econômica
integralmente liberal, em particular abrangendo a esfera financeira,
representa uma anomalia histórica, pois tende a gerar forte
instabilidade econômica e política.
De fato, a liberalização financeira está
intimamente ligada, para a UNCTAD, a dois fenômenos recorrentes
no cenário recente. De um lado, o aumento do desemprego
estrutural (estudado na parte III do TDR-95). De outro, o agravamento
da freqüência e da intensidade das crises financeiras
(objeto do TDR-98).
As políticas adotadas pelos países desenvolvidos
após o segundo choque do petróleo produziram, como
era esperado, recessão e desemprego. Não se previa,
porém, que a posterior retomada do crescimento se daria
simultaneamente a um aumento do desemprego estrutural na maioria
esmagadora desses países. Em contraposição
às explicações fundadas nas rigidezes do
mercado de trabalho ou mesmo na trajetória do progresso
técnico, a UNCTAD explora a hipótese de histerese
de baixo crescimento e alto desemprego, explicada pela interação
entre flexibilização cambial, liberalização
financeira e revolução conservadora nas políticas
econômicas. A liberalização financeira implica
tanto a manutenção das taxas reais de juros em níveis
próximos aos patamares historicamente elevados atingidos
após 1979, quanto um aumento da instabilidade nos preços
de ativos financeiros, nas taxas de câmbio e nas próprias
taxas de juros. Maior instabilidade implica maior risco, e maior
risco implica aumento do diferencial entre taxas curtas e longas
- tudo concorre para deprimir o investimento. A retomada do crescimento,
então, dá-se com taxas de investimento relativamente
baixas, a despeito da recuperação dos lucros. O
lento crescimento do produto potencial gera uma escassez relativa
de capital: a capacidade produtiva existente é insuficiente
para garantir o pleno-emprego. Investimento e crescimento relativamente
baixos perpetuam-se em círculo vicioso.
A mesma liberalização financeira explica o surgimento
de um padrão típico de crises financeiras "pós-Bretton
Woods", cujos traços gerais podem ser identificados
em eventos aparentemente tão distintos quanto o desastre
do Cone Sul, a crise da dívida latino-americana, a crise
bancária e imobiliária norte-americana, o ataque
especulativo contra o sistema monetário europeu e a crise
do Leste-Asiático. Desregulamentação financeira
e liberalização da conta de capital são as
causas habituais, seguidas das habituais conseqüências:
no norte, crises cambiais ou bancárias; no sul, bancárias
e cambiais.
São poucas as possibilidades de pleno-emprego em um só
país. O resgate das políticas fiscal e monetária
como instrumentos de crescimento requer a adoção
de medidas - de âmbito global - que reduzam a instabilidade
decorrente dos fluxos de capital. O crescimento requer coordenação,
para viabilizar políticas de controle dos fluxos de capital
e para induzir uma certa sincronização dos estímulos
expansionistas; requer, noutros termos, uma raising all boats
strategy, a qual também deve contemplar a adoção
de medidas direcionadas aos países em desenvolvimento.
A reconstituição dos requisitos para um crescimento
consistente com o pleno-emprego, evidentemente, é do mais
alto interesse também dos países em desenvolvimento
- até mesmo porque, como salienta o TDR-97, a tão
almejada convergência entre as nações parece
ter como condição necessária um ritmo acelerado
de crescimento da economia global. Lamentavelmente, porém,
tal condição - mesmo quando verificada, como nunca
antes, durante a chamada era de ouro de Bretton Woods - mostrou-se
muito longe de ser suficiente. Esta constatação
fornece à UNCTAD o mote para uma retomada da herança
estruturalista de reflexão acerca do desenvolvimento.
O TDR-99 distingue-se da maior parte dos relatórios publicados
a partir de 1989 pela abrangência de sua temática.
Nesse sentido, pode ser visto como um desdobramento do esforço
empreendido no TDR-97: em ambos, procura-se avaliar a performance
do conjunto dos países em desenvolvimento.
"Globalização, distribuição e
crescimento" é o tema de 1997. Dois anos depois, a
ênfase recai sobre "comércio, financiamento
e crescimento". O escopo semelhante permite que as duas edições
sejam lidas como um único texto - como um esforço
de síntese da visão da UNCTAD e uma aproximação
progressiva à questão do desenvolvimento. Porque,
sim, há uma questão do desenvolvimento, e que consiste,
em essência, no fato de que este, ao contrário do
previsto nas teorias tradicionais do crescimento econômico,
está longe de ser um resultado necessário da operação
dos mercados; nas mais variadas circunstâncias atravessadas
pelo capitalismo, das suas origens até hoje, a convergência
beneficiou um número extremamente restrito de países.
Assim é que, no relatório de 1997, convida-se o
leitor a examinar a proposição "desconfortável"
segundo a qual "não há lei econômica
que faça com que as economias em desenvolvimento convirjam
automaticamente para os níveis de renda dos países
desenvolvidos" (p. vii).
Para fundamentar esta tese, o TDR-97 desvela uma perspectiva
historicamente ampla, examinando os vários indicadores
de convergência (ou divergência) a partir de 1870.
Não há nenhuma ousadia no procedimento em si mesmo,
de vez que, na literatura econômica recente suscitada pelo
fenômeno da globalização, análises
históricas de longo prazo, comparando grande número
de países, têm sido muito freqüentes. E mais,
em boa parte dos casos, os autores -independentemente de suas
distintas visões teóricas - têm estado acordes
em questionar as interpretações mais deslumbradas
acerca do caráter supostamente inusitado das tendências
recentes à dita globalização. Assinalam que,
pelo contrário, de vários pontos de vista, a economia
contemporânea apenas reconstitui uma situação
de interdependência semelhante àquela existente no
período 1870/1913. Procuram, com base no estudo desse período,
encontrar pistas para a compreensão das tendências
contemporâneas. Aqui, porém, encerra-se o consenso.
A análise dos dados, apresentada no TDR-97, mostra que,
no período, tomando-se o mundo como um todo, revela-se
um claro movimento no sentido da divergência. Há,
sim, exemplos notáveis de convergência, como na Europa
Ocidental e, evidentemente, nos Estados Unidos. Mas são
raros, e a lição por eles ensinada não é
propriamente a da convergência como a recompensa que as
leis naturais concedem à austeridade e ao Estado mínimo.
O cenário não é substancialmente distinto
no período que se estende entre 1950 e 1990. A despeito
do crescente econômico até 1973 - este, de fato,
absolutamente inusitado - os exemplos de convergência, ainda
que dramáticos, são ainda pouco numerosos. Há
convergência, novamente, na Europa Ocidental e no Japão,
particularmente durante os anos 50, marcados pelas circunstâncias
peculiares da reconstrução. Para além disso,
destaca-se a primeira leva de tigres asiáticos. De resto,
aumenta a divergência global, medida pela renda, pela produtividade,
pelo salário real. Cresce assim a distância entre
Norte e Sul, como também a dispersão entre os próprios
países em desenvolvimento.
A lição, há muito identificada pela UNCTAD,
é a do sucesso de uma "orientação para
fora", como a praticada no Japão, na Coréia
e em Taiwan, que absolutamente não se confunde com a idéia
liberal de abertura, mas inclui política industrial vinculada
a metas de competitividade, promoção de exportações
acompanhada de proteção à indústria
nascente, incentivo à absorção de tecnologia
e ao upgrading industrial, entre outras características.
(Caberá ao TDR-98, como mencionado acima, assimilar a crise
recente no Leste-Asiático ao padrão geral das crises
pós-Bretton Woods, descartando a interpretação
que nela enxerga também a derrocada do "modelo asiático".)
A perspectiva de longo prazo adotada em parte do TDR-97, e acima
sumariamente descrita, tece o pano de fundo da análise
proposta em 1999. Trata-se, então, de apresentar um balanço
da experiência dos países em desenvolvimento durante
os anos 90, caracterizados pela disseminação e aprofundamento
dos processos de liberalização comercial e financeira.
O objetivo do balanço é, como de hábito,
servir de base à elaboração de perspectivas
e fundamentar propostas relativas à política econômica
e a itens na pauta das negociações internacionais.
As primeiras más novas dizem respeito ao comércio
exterior. Num exercício conceitualmente simples, mas de
resultados eloqüentes (p. 78), demonstra-se que, nos anos
90, para o conjunto dos países em desenvolvimento, com
exclusão da China, o crescimento mantém-se muito
aquém do verificado nos anos 70 (quase dois pontos percentuais
ao ano), enquanto o superávit comercial converte-se em
déficit, numa alteração de quase três
pontos do PIB. A exclusão de um segundo grupo peculiar,
o dos exportadores de petróleo, produz uma trajetória
na qual, mantendo-se o déficit comercial em relação
ao PIB, o crescimento piora novamente (embora menos do que para
o conjunto anterior). A trajetória dos países em
desenvolvimento não-exportadores de petróleo da
América Latina e da Ásia pode ser descrita aproximadamente
nos mesmos termos. Nos extremos, estão a China, com aumento
estupendo no crescimento e queda no déficit comercial,
e a África sub-saariana - numa trajetória quase
linear de queda no crescimento e aumento do déficit comercial,
dos anos 70 em diante.
Para a UNCTAD, as explicações do fenômeno
devem ser buscadas no comportamento dos termos de troca e na própria
liberalização comercial. Para países em desenvolvimento
não-exportadores de petróleo, os termos de troca
pioram à taxa de 1,5% a.a. desde o início dos anos
80. O movimento, interrompido no período 1989/96, recomeça
após a crise asiática. Dá indícios
de possuir caráter secular e, embora afete principalmente
os países menos desenvolvidos, não deixa de prejudicar
também a países exportadores de manufaturas (as
razões dessa deterioração são essencialmente
as mesmas já apontadas há muito pela CEPAL).
A liberalização comercial é analisada com
base nas experiências de quinze países, igualmente
distribuídos entre América Latina, Ásia e
África. Estuda-se o comportamento do crescimento de exportações
e importações, bem como da taxa real de câmbio,
nos dois primeiros anos após a liberalização
e nos dez anos subseqüentes. Só há cinco países
nos quais, ao longo desse segundo período, o crescimento
das exportações alcança ou supera o das importações.
Em muitos casos, a liberalização comercial dá-se
no bojo de um new populist mix (arranjado pelos mesmos críticos
do desenvolvimentismo), que busca fazer das importações
de bens de consumo um fator de alívio de tensões
sociais, como as decorrentes de processos de estabilização).
O pacote completo incluía abertura aos fluxos de capital
e valorização cambial, na maior parte dos casos
coroado por um grand finale composto de déficites comerciais,
reversão dos fluxos de capital e contração
econômica.
No front dos fluxos de capital, as notícias não
são muito melhores. A análise começa por
desmistificar a visão dos anos 90 como um período
de inédita fartura. Há, inquestionavelmente, recuperação
dos fluxos de capital para países em desenvolvimento, em
relação aos anos 80; os influxos e as transferências
líquidos crescem (essas últimas haviam sido negativas
entre 1983/89), mas para atingir nível apenas ligeiramente
superior (em relação ao PIB) àquele verificado
no período 1975/82. Todavia, a avaliação
do significado desse movimento requer que, dos influxos líquidos,
deduzam-se as "transações financeiras compensatórias":
compras líquidas de ativos no exterior por residentes,
saídas ilegais e acumulação de reservas.
Nos anos 90, a liberalização financeira permite
o aumento do primeiro item (sem que ele substitua completamente
as saídas ilegais), ao mesmo tempo em que exige dos países
em desenvolvimento a acumulação de reservas muito
superiores àquelas determinadas pelas regras de bolso tradicionais.
Assim é que, para um conjunto de 15 economias emergentes,
o volume dessas transações compensatórias
sobe de menos de 30% dos influxos líquidos nos anos 80
para 50% nos anos 90. O resíduo é a contribuição
líquida dos movimentos de capitais ao financiamento da
conta corrente: somente 50 centavos por dólar, contra 72
centavos na década anterior.
O caráter desfavorável dessas mudanças mostra-se
ainda mais grave quando se tem em conta o papel dos fluxos de
curto prazo (que incluem o investimento de porta-fólio).
A despeito do enorme crescimento em seu volume bruto, sua contribuição
ao financiamento da conta corrente é particularmente pequeno:
no período 1990/97, mais de 55% do influxo são absorvidos
por saídas de capital, igualmente de curto prazo, possibilitando
a residentes a implementação de estratégias
de diversificação de porta-fólio de interesse
social no mínimo duvidoso; por outro lado em períodos
de crise, os não-residentes vendem seus ativos nos países
em desenvolvimento, ao mesmo tempo em que os residentes, desesperadamente,
buscam comprar ainda mais ativos no exterior...
Em relação ao investimento direto, por fim, o relatório
salienta sua concentração em uns poucos países,
em aquisições de empresas (excluída a China,
72% do investimento direto cumulativo entre 1992 e 1997) e em
setores non-tradable. As implicações problemáticas
desse perfil, antes de mais nada no que tange às contas
externas, têm sido aludidas à saciedade no debate
econômico brasileiro.
Este é o balanço, pouco animador. Já as
perspectivas... são extremamente desfavoráveis para
o mundo em desenvolvimento tomado em conjunto, a menos que haja
reformas estruturais nos planos do comércio e das finanças
internacionais. É necessário, de um lado, criar
as condições para o aumento das taxas de crescimento
da economia global. De outro, as reformas são condição
para que esse crescimento possa acomodar um amplo movimento de
convergência por parte dos países em desenvolvimento.
Como visto acima, uma das principais teses da UNCTAD é
a que vê como um instrumento indispensável à
convergência a integração nacionalmente administrada
à economia internacional, mas fundamentalmente pela via
do comércio, e não dos fluxos privados de capital.
A primazia do comércio internacional como mecanismo de
integração não se deve apenas - e tampouco
fundamentalmente - aos presumíveis efeitos daquele sobre
a alocação estática de recursos, e sim aos
efeitos em termos de geração líquida de renda
e de emprego, de aceleração na acumulação
de capital e na absorção de tecnologia por parte
dos países em desenvolvimento.
Para demonstrar o potencial do comércio exterior, o relatório,
em seu último capítulo, analisa as possibilidades
da exportação, pelos países em desenvolvimento,
de alguns produtos nos quais muitos deles possuem, claramente,
vantagens comparativas (calçados, têxteis, metálicos,
plásticos, tabaco...). Ora, como é notório,
muitas dessas indústrias encontram-se justamente entre
aquelas mais protegidas pelos países desenvolvidos. A adoção
de políticas menos protecionistas permitiria fortes ganhos
relativos das exportações dos países em desenvolvimento
nos mercados desenvolvidos e, mesmo, em alguns casos, ganhos absolutos
(isto é, implicando a redução da produção,
nos países desenvolvidos, em setores como, por exemplo,
têxteis e calçados). No cenário mais otimista,
a UNCTAD estima que o potencial exportador dos países em
desenvolvimento alcançaria a faixa de US$ 700 bilhões
em 2005 (p. 143), o que corresponde a quase o quádruplo
do valor médio anual dos influxos privados de capital estrangeiro
aos países em desenvolvimento nos anos 90. Corresponde,
ainda, a aproximadamente 12% do PIB dos países em desenvolvimento,
e a menos de 3% do PIB dos países desenvolvidos. Ressalte-se
que a simulação não contempla a possibilidade
de liberalização comercial também no setor
agrícola.
Estes valores permitem compreender por que razão a UNCTAD,
ao aceitar a idéia de uma nova rodada de negociações
internacionais na OMC, propõe que essa rodada - que se
espera seja "do desenvolvimento" - tenha como prioridade
o velho do tema do acesso aos mercados.
Todavia, a própria interpretação da instituição
acerca do significado do comércio exterior para os países
em desenvolvimento conduz a questões e propostas bem mais
amplas do que as do mero acesso aos mercados desenvolvidos. A
integração via comércio exterior confirma-se
como instrumento de desenvolvimento econômico quando permite
a constituição de um círculo virtuoso encadeando
aumento de exportações e do investimento, maior
produtividade, absorção de tecnologia e crescimento
da renda. Para assegurar um processo sustentado de crescimento
das exportações, é necessário que
a política industrial e financeira dos países em
desenvolvimento promova - e sem os empecilhos impostos pela rodada
Uruguai - a migração progressiva rumo a setores
mais intensivos em capital e tecnologia, o que demanda políticas
financeiras e industriais, e entre elas a proteção
a indústrias nascentes.
Noutros termos, a UNCTAD reabilita outra velha fórmula,
aquela segundo a qual os países em desenvolvimento, apresentando
"problemas endêmicos de balanço de pagamentos"
(p. 132), devem ser beneficiados por um tratamento "generalizado
e preferencial, não-recíproco e não-discriminatório".
Por sinal, a instituição assume uma posição
agressivamente revisionista em relação a vários
aspectos dos acordos travados na rodada Uruguai, seja porque (na
antiga tradição do GATT) deixaram de lado questões
de interesse dos países em desenvolvimento, seja porque,
ao tratá-las, definiram procedimentos e cronogramas pouco
favoráveis a eles.
Publicado às vésperas da malfadada reunião
ministerial da OMC em Seattle, o relatório concentra-se
nas propostas em relação à ordem comercial.
Em relação à ordem financeira, remete, no
essencial, às recomendações veiculadas em
publicações anteriores. Vale destacar, porém,
a ênfase com que se descarta a centralidade da tão
discutida questão do regime cambial. Na contracorrente
do debate ocorrido após 1997, o relatório sustenta
que "nenhum regime cambial pode assegurar a estabilidade
e a autonomia necessária a uma performance comercial exitosa,
a menos que os fluxos de capital desestabilizadores sejam colocados
sob controle" (p. 128).
As recomendações no sentido da revisão dos
acordos da rodada Uruguai, a ênfase na remoção
dos obstáculos estruturais impostos pelas forças
de mercado ao desenvolvimento, a muito keynesiana desconfiança
em relação aos fluxos internacionais de capitais:
o conjunto dos TDR apresenta um verdadeiro compêndio das
idéias heterodoxas sobre a ordem econômica internacional,
compondo um discurso que atende aos requisitos de uma peça
retórica bem acabada, isto é, abrangente, clara
e consistente.
A indisfarçável simpatia do autor dessa resenha
em relação a essas mesmas idéias não
implica, porém, qualquer sugestão de que a UNCTAD
tenha pronunciado - ou possa vir a fazê-lo - a palavra final
sobre os dilemas do desenvolvimento. Há pontos tratados
de forma mais superficial, refletindo talvez a própria
escassez de recursos intelectuais à disposição
da heterodoxia, assim como o caráter não-acadêmico
dos relatórios e da própria instituição,
que deve obrigatoriamente se pronunciar sobre um amplo leque de
temas (de preferência, sem desagradar demasiadamente a seus
constituintes). E há também certas omissões
que sem dúvida reduzem o poder de convencimento de seu
discurso.
Curiosamente, uma das principais omissões diz respeito
exatamente a países como o Brasil e a Índia que,
no passado, foram dos principais sustentáculos do bloco
dos 77. A despeito de sua importância econômica e
política - e da presumível especificidade das recomendações
de política econômica - o caso de países de
dimensões continentais tem sido pouco explorado. A "graduação"
dos países em desenvolvimento, aliás, é um
tópico a ser explorado com mais vagar, afinal, a ruptura
do bloco dos países em desenvolvimento (a qual também
responde pela relativamente baixa repercussão dos trabalhos
da instituição) é obra tanto das estratégias
políticas dos países desenvolvidos quanto do aprofundamento
dos processos de diferenciação internos ao "Sul".
A experiência norte-americana, já aludida acima,
constitui outra das brechas desse discurso. Os TDR - como uma
multidão de intérpretes, entre os quais o Economist
- há tempos alertam para a fragilidade das bases da expansão
norte-americana. Frágil ou não, porém, essa
expansão, já a mais longa da história americana,
não pode ser abstraída ou permanecer como anomalia
inexplicada no bojo de um discurso heterodoxo que sublinha o caráter
pouco dinâmico da economia pós-Bretton Woods.
Finalmente, coloca-se uma dificuldade que, em última instância
insuperável, pode ter seus efeitos em parte remediados.
Refiro-me à existência de uma assimetria entre o
discurso liberal e o desenvolvimentista. Não há,
ainda, invenção retórica cuja eficácia
compare-se à da mão invisível (nada, ao menos,
que tenha resistido tão bem à ação
do tempo): o mercado foi sacramentado por Smith como o responsável
pela transformação alquímica de egoísmo
privado em virtude social; desde Ricardo e Say, é também
o instrumento da harmonia entre as nações.
Que resposta pode dar a isso o discurso desenvolvimentista? O
argumento da UNCTAD é complexo: a verdadeira estratégia
win-win consiste na retomada do crescimento por meio de uma política
keynesiana global, na reversão da liberalização
financeira e na implementação de concessões
comerciais por parte dos países desenvolvidos; as desejadas
generalização e aceleração dos processos
de convergência terão um custo - possivelmente significativo
- para os países desenvolvidos; espera-se que esses custos
sejam amortecidos pelo crescimento, socializados pela adoção
de políticas de reestruturação, e quiçá
compensados pela implantação de uma estrutura produtiva
mais conforme às vantagens comparativas de suas economias.
Sobre esse argumento, que é impossível sintetizar
numa fórmula mágica comparável à da
mão invisível, recai o ônus da prova. Prová-lo,
de forma a convencer uma parte maior da opinião pública
dos países desenvolvidos (e mesmo dos países em
desenvolvimento), requer esforços redobrados; os acontecimentos
de Seattle representam um desafio também ao desenvolvimentismo.
O resto são outras dimensões da luta política
a ser travada no plano internacional e no plano interno dos vários
países em desenvolvimento, por seus respectivos governos
e diplomacias. E estes, nos últimos anos, não têm
se mostrado particularmente ativos em suas articulações
e contundentes em suas propostas. Infelizmente, corrigir a inapetência
de antigas lideranças do "Sul" é tarefa
que vai muito além das possibilidades de uma pequena e
brava organização sediada em Genebra.
Antonio Carlos Macedo e Silva é professor do
Instituto de Economia da UNICAMP.
Artigo publicado em Economia e Sociedade, Campinas, Unicamp. Instituto
de Economia, n. 13, dez. 1999.
www.eco.unicamp.br/publicacoes/revista.html
Bibliografia
BIELSCHOWSKY, R. Evolución de las ideas de la CEPAL. In:
CEPAL (1998).
CEPAL. Cincuenta años de pensamiento en la Cepal - textos
seleccionados. Santiago: Cepal/Fondo, 1998.
PREBISCH, R. Towards a new trade policy for development. New York:
UN, 1964. (Excertos foram republicados em CEPAL (1998).
SPERO, J. F., HART, J. A. The politics of international economic
relations. London: Routledge, 1997.
THE ECONOMIST. A UN family in a fog. March, 23, 1996a.
THE ECONOMIST. Trade and development: the Asian way? Sept. 21,
1996b.
UNCTAD. Trade and Development Report (Vários anos).
VAN DER WEE, H. Prosperity and upheaval - the world economy, 1945-1980.
Middlesex, England, 1986.
WORLD BANK. World Development Report, 1999.
Quadro
Comércio e desenvolvimento: um apanhado dos temas especiais
dos TDRs entre 1989 e 1999
Ano Regiões ou grupos de países Comércio
internacional Finanças Emprego e distribuição
da renda
1989 Os países menos desenvolvidos Desordem macroeconômica
nos países em desenvolvimento Reforma da política
comercial e performance exportadora em países em desenvolvimento
nos anos 80
1990 Internacionalização das finanças
1991 Negociações da Rodada Uruguai Finança,
investimento e poupança
1992 Reforma da política comercial nos países em
desenvolvimento Finança e expansão econômica:
dívida externa, debt deflation
1993 A dinâmica do crescimento: diferentes padrões
(países industrializados, África sub-saariana, América
Latina, Leste-Asiático) Dívida externa
1994 A mão visível e a industrialização
do Leste Asiático Avaliação da Rodada Uruguai
Controle dos movimentos internacionais de capital O gap deflacionário
e o ajustamento no Norte
1995 A mão invisível, fluxos de capital e recuperação
interrompida na América Latina Risco sistêmico e
mercados de derivativos Desemprego e interdependência
1996 Repensando as estratégias de desenvolvimento: algumas
lições da experiência do Leste Asiático
1997 Promovendo o investimento: algumas lições do
Leste Asiático Globalização, distribuição
e crescimento
1998 O desenvolvimento africano Instabilidade financeira internacional
e crise do Leste Asiático Administração e
prevenção de crises financeiras
1999 Comércio, financiamento externo e crescimento econômico
nos países em desenvolvimento
Nota: a descrição de cada tema corresponde, basicamente,
a títulos de seções dos TDRs; na maior parte
dos casos, trata-se dos títulos da parte II dos relatórios
(ou da parte III, só existente em alguns anos); em alguns
casos, optou-se por explicitar os temas dos vários capítulos
que compõem uma parte. A classificação em
quatro grandes blocos temáticos é assumidamente
precária, e deve ser entendida apenas como uma orientação
preliminar de leitura.
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