Não é da privatização que temos
necessidade, mas da definição de uma noção
autêntica de patrimônio comum da humanidade
Em nome da diminuição do consumo, a ofensiva
contra os serviços públicos vai a todo o vapor
desde a década de 80. Depois de ter passado a ser mal
vista a economia do bem-estar social (o welfare State), passa-se
a investir contra a própria existência do Estado,
1 que seria necessário "desinventar". 2 E como
há necessidade de nobres objetivos, acusa-se a centralização
burocrática e a frágil eficácia dos serviços
públicos, de que padeceria, em última instância,
o bem-estar dos cidadãos. Liberemos, liberalizemos, privatizemos;
abaixo o setor público, refúgio de todos os arcaísmos.
Colocar a questão dos serviços públicos
e do Estado é, antes de tudo, colocar as questões
da lógica social e do modo de regulamentação:
se, em todos os níveis, a economia obedece somente à
lógica individual mercantil, então o único
regulador deve ser o mercado. Esta convicção expressa-se
na própria incapacidade em que se acha a economia mercantil
de definir a economia pública de outra maneira senão
residualmente, relacionando-a com ela mesma: "Todo serviço
que não é fornecido em bases comerciais nem em
concorrência com um ou vários fornecedores do serviço",
dizem os acordos de Marrakech de 1994, que criaram a Organização
Mundial do Comércio (OMC). Tão logo uma parte
das atividades de um setor passa ao mercado, é todo o
setor que se torna susceptível de ser liberalizado: saúde
e a educação, por exemplo, prestam-se "naturalmente"
à privatização. Portanto, é somente
em relação à realidade mercantil reconhecida
que se aprecia o desempenho do setor público e, como
seus produtos não são vendidos no mercado, a conseqüência
é evidente: não têm valor e o serviço
público nada comporta senão custos.
Interesses individuais e interesses coletivos
Já a economia plural, ao contrário, define os
diferentes setores pela natureza da sua função.
Esta economia revela-se plural, ao mesmo tempo, nela própria
e nas suas interdependências com outros sistemas, situados
em outros níveis (o social, a natureza) cujos mecanismos
e leis deve respeitar sob pena de se autodestruir.
Existe uma racionalidade individual e uma racionalidade coletiva,
interdependentes, mas irredutíveis uma à outra.
Uma refere-se aos interesses individuais; a outra ao interesse
geral. 3 Esta encarrega-se dos bens coletivos (o farol, a barragem,
a infraestrutura...), dos serviços sociais (saúde,
educação...) e dos direitos fundamentais dos indivíduos
(liberdade, segurança, igualdade perante a lei e no acesso
aos bens comuns...). Cada campo define-se, portanto, por suas
funções.
É, portanto, a nível do interesse individual
que se manifestam, da maneira mais motivada e melhor informada,
as aspirações da multidão de seres conscientes
que compõem a sociedade. Nenhum sistema o pode ignorar,
sob pena de ineficiência, de constrangimentos inúteis
e de autodestruição. Devido a tal ignorância
é que pereceu a economia hipercentralizada do Leste europeu.
O interesse individual exprime-se no mercado, cuja sanção
é o lucro. O mercado, contudo, não pode assegurar
as duas funções para que não foi concebido:
a reprodução dos recursos humanos e dos recursos
naturais.
Saúde e educação: privatizáveis?
O interesse coletivo existe igualmente, irredutível
ao precedente. A necessidade coletiva não decorre da
necessidade individual; é de natureza diferente. O bem
coletivo não satisfaz nenhuma das condições
da formação de um preço no mercado. Do
lado da demanda, seu serviço é ao mesmo tempo
indivisível e simultaneamente consumível por cada
indivíduo, sem que nada seja retirado de outros: o navegador
que se deixa guiar pela luz do farol utiliza-o inteiramente
(e não em quantidades maiores ou menores em função
de um preço) e no entanto deixa-o inteiramente disponível
para os outros; contrariamente ao bem individual, que não
pode pertencer senão a um ou a outro, não há
portanto competição pela posse do bem coletivo,
e nada obriga o consumidor a manifestar suas preferências
oferecendo um preço, já que nenhuma concorrência
pode privá-lo do bem. Do lado da oferta, o bem coletivo
não tem custo marginal: a construção de
um pedaço de farol não faz sentido: ou se constrói
por inteiro ou não se constrói. François
Perroux chamava esse tipo de investimento de "apostar em
novas estruturas".
Sem preferências manifestas e sem custo marginal, o bem
coletivo não pode depender da lógica mercantil.
Sua rentabilidade não aparece na contabilidade, mas no
faturamento das firmas ao seu redor, e a longo prazo. A verdadeira
eficiência econômica das ferrovias não se
mede, ao longo da história, em perdas e lucros, mas por
sua contribuição ao crescimento da produção
nacional. Até o déficit aqui pode ser racional,
na medida em que -- em última instância -- estimula
a criação de riquezas que lhe são superiores.
4 Que dizer, a fortiori, da saúde ou da educação?
Vamos tomá-las, de momento, como simples bens intermediários
avaliados pelos padrões da própria rentabilidade
mercantil. Ao não as avaliar senão pelo ângulo
do custo, o pensamento dominante logo declara improdutivas as
instituições públicas que as assumem. A
formação espiritual e de saúde das pessoas
nada significariam, portanto?
Um corpo sem alma
Tomemos ao pé da letra esses senhores do Medef -- Movimento
dos Empresários da França, e apliquemo-lhes a
célebre parábola de Saint-Simon (1810): em que
se tornaria a eficácia de suas empresas, únicas
criadoras de riquezas, ao que dizem, se amanhã desaparecessem
esses monumentos de suposta improdutividade que são o
sistema educativo, o sistema de saúde, a infraestrutura
pública de transportes e comunicações,
todos os serviços públicos, enfim? "A nação
seria um corpo sem alma no instante em que os perdesse."
Os que denigrem o serviço público veriam então
o que aconteceria com a magnífica produtividade de que
se glorificam; perceberiam tudo o que o seu desempenho deve
à coletividade, assim como às despesas financeiras
de formação e manutenção do "material
humano" (pois é assim que o chamam) de que passariam
a não dispor. E o que aconteceria se -- e Deus permita
que tal não ocorra -- todo o seu estado-maior (o califa,
seu braço-direito, seu braço-esquerdo, seus flautistas,
seus sub-flautistas, alguns vizires, grandes ou pequenos, que
tanto gostariam de se ver no lugar do califa) decidisse recolher-se
às sombras? Isso "certamente afligiria os franceses,
porque são bons [...]. Mas essa perda não lhes
causaria pesar senão sob o aspecto puramente sentimental,
já que disto não resultaria nenhum mal político
para o Estado".
A lógica mercantil consiste em limitar ao máximo
os investimentos de rendimento coletivo a longo prazo -- que
se diluem no conjunto da sociedade --, preferindo ações
direta e imediatamente mais rentáveis. Estes investimentos
não podem, portanto, senão ser feitos pelos poderes
públicos, de acordo com a importância que estes
lhes dêem, na função que preferirem, e para
atender à necessidade que têm por objetivo satisfazer.
Tipos de atividades
Existem, portanto, campos legítimos -- interdependentes,
mas distintos -- da gestão pública e da gestão
privada. O critério de utilidade individual ou coletiva,
que acabamos de destacar, permite-nos distinguir três
tipos de atividades:
· as que dizem respeito às necessidades individuais
e põem em causa agentes individuais (consumidores, comerciantes,
artesãos, atividades com fracos efeitos na coletividade...)
não direcionam, por sua própria natureza, a escolha
das finalidades sociais e cabem incontestavelmente à
iniciativa privada. A intervenção direta do Estado
se traduziria aqui por constrangimentos inúteis e nocivos
ao dinamismo e à capacidade de adaptação
ao sistema;
· as que, por sua natureza (bens coletivos, saúde,
educação, segurança...), apresentam, com
toda evidência, uma concepção de utilidade
social e do serviço público que escapam à
lógica do mercado e devem ser assumidas pela coletividade;
· as atividades suscetíveis de serem rentáveis
no mercado, podendo, portanto, ser materialmente assumidas pela
iniciativa privada, guiada pelo objetivo do lucro (atividades
bancárias, indústrias pesadas, fabricação
de armamentos...), mas que, por sua natureza e pela gama de
efeitos que comportam, ou o poder que conferem aos que as detêm,
envolvem, de fato, o futuro da coletividade, devendo por isso
ser submetidas à sua autoridade: é este o campo
da empresa pública, do planejamento e do controle estatal.
Deste ponto de vista, a entrega das indústrias de armamentos
aos interesses privados, assim como a autonomia aos bancos centrais,
colocando a lógica parcial do instrumento acima da lógica
da sociedade, constituem puras aberrações.
Fontes do progresso das novas tecnologias
Estes três tipos de atividades não devem ser considerados
isoladamente, mas em suas interdependências. A despeito
de todos os dogmatismos, foi da cooperação entre
eles, e não unicamente do mercado, que surgiram os progressos
decisivos das novas tecnologias. A ação estratégica
do Estado -- veiculada nos meios de comunicação
pelo Ministério da Indústria e do Comércio
Internacional -- desempenhou um papel decisivo, no último
quarto do século XX, na transformação do
Japão num dos principais atores das tecnologias da informação.
A Europa jamais poderia concorrer com os Estados Unidos nas
áreas da aeronáutica ou aeroespacial sem a intermediação
dos governos. Na França, em nenhum momento o crescimento
do produto nacional foi tão forte que durante os gloriosos
trinta, quando uma política de planejamento flexível,
que definia as prioridades essenciais, combinou-se com o respeito
à livre iniciativa individual. Nos Estados Unidos, na
década de 70, os pioneiros do Vale do Silício
só puderam registrar a evolução tecnológica
com o selo da flexibilidade e da descentralização
porque os contratos militares e os apelos do Ministério
da Defesa, durante as três décadas precedentes,
criaram condições favoráveis à eclosão
do fenômeno.
Nesta perspectiva, a ofensiva da privatização
é paradoxal. Dizem-nos que as atividades públicas
devem transformar-se mais e mais em atividades mercantis, no
momento em que, ao contrário, são as atividades
mercantis que exercem conseqüências sociais mais
e mais importantes. E são visíveis: a informática,
penetrando todas as atividades, reforça a interdependência
entre elas; o produto nacional transforma-se em bem coletivo;
o progresso técnico, aumentando o poder dos homens sobre
si mesmos, sobre a vida, sobre os meios naturais, levanta problemas
que ultrapassam de muito longe a simples lógica mercantil.
Patrimônio comum da humanidade
As interdependências prolongam-se em escala internacional:
por natureza, redes como o "trem-bala", os transportes
aéreos ou as telecomunicações referem-se
ao espaço europeu; problemas cruciais para a humanidade
anunciam-se, num futuro próximo, em áreas como
a poluição global, ou recursos como a água.
Tudo isso clama por uma gestão mundial. Não é
da privatização que temos necessidade, mas da
definição de uma noção autêntica
de patrimônio comum da humanidade. A verdadeira urgência
não é, portanto, expandir o campo da iniciativa
privada em detrimento do setor público, mas, ao contrário,
aumentar o controle da coletividade sobre as atividades privadas
que comportem sérias conseqüências sociais.
Coletivo não quer necessariamente dizer estatal: os atores
sociais e os movimentos de cidadania têm também
uma palavra a dar sobre a estrutura que será necessário
inventar para tanto.
René Passet, Le Monde Diplomatique
René Passet é professor emérito da Universidade
Paris I; presidente do Conselho Científico do ATTAC --
Ação pela Tributação das Transações
Financeiras para Apoio aos Cidadãos [voltar] 1 Ler, de
Riccardo Petrella, "Mondialisation, services publics et
Europe: se battre pour la citoyenneté", na revista
Transversales Science/Culture, nº 37, Paris, janeiro-fevereiro
de 1996.
Traduzido por Roberto Magellan
2 "De-inventing the State", The Economist, Londres,
20 de maio de 1995.
3 Existem bastantes países onde não se diz "serviços
públicos", mas atividades, ou serviços "de
interesse
geral". É uma expressão bastante apropriada
a este texto.
4 Acrescentemos que faz parte da lógica do bem coletivo
mobilizar um potencial supérfluo, com relação
às necessidades que se trata de satisfazer: a ponte,
a represa são construídos para durar muito tempo;
seu objetivo é mais o de fazer surgirem novas atividades
geradoras de novas necessidades que de satisfazer aquelas imediatas;
a irracionalidade estaria no fato de [a ponte, a represa] serem
plenamente utilizados desde que inaugurados; o capital por eles
mobilizado não pode, portanto, ser imediatamente rentável,
mas apenas a longo prazo, o que não é do interesse
dos capitais privados. [voltar]