Construímos uma experiência
na contra-mão do projeto neoliberal
A Constituição brasileira de 1988 estabeleceu
em seu artigo 1º, parágrafo único, que "Todo
poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes
eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição".
Com pouco mais de uma década, a nova carta constitucional
incorporou, pela primeira vez, a idéia do exercício
direto da soberania popular.
Além disso, repetiu a concepção clássica
dos Estados Modernos de que "o poder emana do povo",
conceito teórico presente ao longo da nossa experiência
republicana, mas quase sempre ausente na vida política
real do país, marcado ao largo deste século por
governos oligárquicos excludentes e longos períodos
de regimes militares autoritários e ditatoriais.
O fato do Estado brasileiro encerrar essa contradição
entre a concepção dos estados constitucionais
modernos e até "avançar" na declaração
do exercício direto da soberania popular com uma história
real pouco democrática não é muito distinto
do avanço das conquistas democráticas em outras
partes do mundo.
O liberalismo que marcou os primeiros regimes constitucionais
nunca teve a iniciativa dos avanços das conquistas sociais.
O voto censitário, a ausência do sufrágio
feminino, as dificuldades e até proibições,
explícitas e implícitas, ao funcionamento e representação
dos partidos anticapitalistas sempre deram aos regimes políticos
liberais um caráter oligárquico e elitista.
No Brasil e em outros países, isso é agravado
pela cultura de quatro séculos de latifúndio escravocrata,
ao clientelismo, ao patrimonialismo, a negação
do trabalho e por longos períodos ditatoriais.
Assim, o avanço das lutas e conquistas democráticas
não foi e não é um processo linear. Ao
contrário, sempre foi marcado por conflitos e contradições,
mesmo em seus primórdios liberais.
As concepções "igualitárias"
de ROUSSEAU e as concepções "possessivas",
"proprietárias" de LOCKE, por exemplo, expressavam
interesses sociais distintos e conduziram a tendências
bem diferentes na construção do Estado capitalista.
Ainda que ambas partissem do direito natural, fundamento do
pensamento liberal, para Rousseau a idéia da liberdade
indissociada da igualdade como condição humana.
O pensamento "proprietário" de Locke, predominante
nas sociedades capitalistas sustentava que o direito à
liberdade era um dos fundamentos do direito à propriedade
e ao estado cabia defendê-la.
Com isso não queremos fazer uma divagação
teórica mas situar as origens do debate sobre a delegação
do poder. Compreender que não é um debate recente
e registrar que as diferentes explicações teóricas
e ideológicas desse processo expressam interesses sociais
distintos ao longo da história e tem, até hoje,
conseqüência diversas no desenvolvimento político
da humanidade.
Radicalizar a leitura da Constituição brasileira
de 1988 onde "o poder emana do povo" é retomar
o debate no qual Rosseau firmava que ao ato no qual se realiza
o contrato da sociedade política, onde se convenciona
um governo, existe um momento anterior que é aquele em
que "o povo é povo" e esta condição
é a convenção primeira, aquela soberania
que para ele não podia ser transferida, delegada ou dividida.
Essa concepção se era irreal ao mundo que a cercava,
prenunciava o grande desafio para qualquer avanço democrático
no interior das concepções liberais.
Como manter a soberania popular? Ou como controlar e diminuir
as formas de delegação para que se mantenha a
soberania popular? Esta questão continua atual, desafiando-nos.
A partir das grandes vertentes liberais desdobraram-se sistemas
políticos representativos com características
próprias, mas alicerçados na visão do "liberalismo
proprietário". São os casos das repúblicas
ou monarquias constitucionais parlamentares onde a delegação
pelo voto ao Parlamento unifica as funções legislativa
e executiva, mas também, das repúblicas presidencialistas,
onde Executivo e Legislativo têm competências e
critérios eletivos distintos.
Esse processo histórico demonstrou de forma cristalina
que o liberalismo não foi e não é sinônimo
de democracia.
Durante os séculos XIX a XX, o direito à organização
sindical, ao partido político, ao sufrágio universal
foram conquistadas duramente alcançadas, bem como as
lutas pela jornada e as condições de trabalho.
Este reformismo social sustentou a política do Estado
de Bem Estar Social na Europa e a relativa proteção
trabalhista no Brasil. As novas contradições e
relações de classe produziram novas concepções
político-ideológicas de mundo e das relações
entre a sociedade e o Estado.
O pensamento socialista, principalmente em sua concepção
marxista fez a crítica as concepções liberais,
afirmando o caráter de classe do Estado e sua subordinação
aos interesses predominantes na sociedade na esfera da produção,
bem como a crítica de que a igualdade do Estado de Direito
não ultrapassa a igualdade jurídica do cidadão
(ã) tentando encobrir a real desigualdade social existente
na sociedade.
Mesmo sem desenvolver um concepção de Estado socialista,
o pensamento marxista teorizou e sistematizou experiências
concretas como a Comuna de Paris. Buscando extrair daí
lições de uma nova relação da sociedade
com o Estado.
A efêmera experiência da Comuna de Paris e as experiências
com bases nos Conselhos (Sovietes), nos primeiro anos da Revolução
Russa, retomam a questão da representação
e delegação do poder, buscando superar a igualdade
jurídica formal e distanciamento do poder político
da maioria da população nos regimes de representação
liberal e parlamentar clássica. Os conselhos (sovietes)
mesmo com graus de delegação, buscavam garantir
ao produtor/trabalhador, o papel simultâneo de legislador
por meio de uma estrutura com base na produção,
nos serviços e nas Comunas através de conselhos
locais, regionais e da união.
A experiência soviética não sobreviveu
à guerra civil e ao autoritarismo-burocrático
que prevaleceu na luta interna da União Soviética
nos anos 20. Aos poucos, o centralismo, o Partido Único,
o autoritarismo e a burocratização anularam qualquer
possibilidade de uma nova democracia socialista.
O "socialismo real" do leste Europeu e da China e
seus seguidores menores sufocaram este debate no campo da esquerda
ao longo do século XX. O predomínio das experiências
social-democratas ou de democracias burguesas liberais consolidou
a visão da democracia representativa com ápice
do avanço político da humanidade.
Na maioria dos países de democracia liberal, entretanto,
o sistema de representação vive um processo de
crise de legitimidade, expresso na abstenção eleitoral,
na apatia e pouca participação político-social,
e mais recentemente, agravado pela dificuldade dos países
capitalistas desenvolvidos manterem as reformas e avanços
do "Estado do Bem-estar Social".
O mundo subdesenvolvido, essa legitimidade sempre foi pequena
em função dos regimes ditatoriais e do autoritarismo
populista, mas principalmente pela incapacidade dos governos
e do sistema resolverem, minimamente, a brutal desigualdade
social e regional nestes países.
A pouca legitimidade reside, também no processo de burocratização
e elitização das administrações
e parlamentos, nos sistemas eleitorais que impedem e/ou distorcem
a representação popular com barreiras de acesso
ou mecanismos de voto distrital que impedem o respeito e o direito
a proporcionalidade das minorias, a diluição programática
e falta de coerência entre discurso e prática dos
eleitos (a), a falta de controle dos eleitores (as) sobre os
eleitos (as). No Brasil, isto é ainda mais agravado pelas
trocas de partido sem perda de mandato.
Há, porém, outro fenômeno em curso na América
Latina, no Brasil em especial, que não tem paralelo na
Europa ou em outros centros capitalistas. É o rápido
crescimento populacional e acelerado processo de urbanização.
Há 30 anos a população brasileira era de
90 milhões de habitantes. Após uma geração
a população quase dobrou, hoje são 170
milhões. Há 50 anos, dois terços da população
era rural. Hoje, 80% dos brasileiros vivem em centros urbanos.
Esse processo trouxe profundas mudanças no comportamento
político-partidário no país. A luta pelo
acesso aos serviços básicos necessários
para a vida urbana e para o cotidiano de milhões de pessoas
(infraestrutura viária, saneamento básico, saúde,
educação, moradia etc.) modificou o comportamento
das pessoas e alterou, radicalmente, o papel e as demandas que
são exigidas do poder local.
Nos últimos quinze anos o poder central no Brasil trilhou
um caminho oposto.
O discurso e a prática neoliberal apontaram como política
para sair do subdesenvolvimento o esvaziamento das funções
sociais do Estado, a privatização das empresas
e dos serviços públicos essenciais, a abertura
submissa do comércio externo e da remuneração
dos lucros e dos serviços da divida às grandes
empresas e credores internacionais, o favorecimento da especulação
financeira e crescimento brutal do desemprego. Enfim, o descaso
crescente com as necessidades da população.
Por essas razões, a população voltou-se
para participar, cobrar, exigir mais dos governos locais e estes
vem assumindo novos encargos, mais competências de serviços
públicos sem que ocorram as devidas mudanças na
distribuição do conjunto dos tributos arrecadados
no país.
Atualmente no Brasil, apenas 14% da receita total disponível
permanece nos municípios, enquanto 63% ficam nas mãos
do governo federal. Aos Estados, também responsáveis
pela educação, saúde e segurança
pública, cabe os restantes 23% do bolo tributário.
Nestas circunstâncias é que nossa experiência
de democracia participativa há doze anos em Porto Alegre
adquire sentido e importância. Conscientes dos limites
das experiências locais e de que elas devem estar integradas
num projeto maior que pense o país numa nova concepção
de mundo, não podíamos cruzar os braços
e esperar que todos os problemas teóricos e estratégicos
do movimento socialista estivessem resolvidos para atuarmos
no município.
Construímos, governo e movimento popular, uma rica experiência
participativa na contra-mão do projeto neoliberal.
A vitória da Frente Popular, em 1988, resultado do crescimento
do PT e do acúmulo das lutas dos movimentos sociais dos
anos 80 e marcada por um programa comprometido com os interesses
concretos das classes trabalhadoras, nos conduziu a estabelecer
novas prioridades para o governo local. Para nós, o mais
importante é que essa inversão de prioridades
fosse através da participação popular.
Para que os recursos públicos fossem gastos e investidos
de acordo com a necessidade da população nada
melhor do que começar alterando profundamente as formas
de decisão.
A organização do Orçamento Participativo
através de estrutura regionais e temáticas, nas
quais a participação é pública,
direta e deliberante foi o carro-chefe de um conjunto de outras
formas de incentivo à cidadania incidir diretamente sobre
o governo. Os Conselhos Municipais, organismos consultivos setoriais
que estavam desativados ou com pouco funcionamento, trasnformaram-se,
também, em importantes instrumentos de formulação
e de definição de políticas públicas.
Ao longo desses doze anos - agora ratificados para mais um
mandato da Frente Popular - uma verdadeira revolução
operou-se nos gastos públicos. A partir da crescente
participação popular - no primeiro ano menos de
um mil, nos dois últimos anos vinte mil pessoas - os
gastos e investimentos municipais foram sendo alocados, prioritariamente,
de acordo com a hierarquia decidida pela população.
Nada mais ilustrativo do que a comparação entre
as despesas e investimentos nos primeiros anos nas áreas
sociais da saúde, educação, assistência
social e moradia, com os últimos anos.
Em 89/90 gastava-se R$91 milhões (23% do orçamento)-
em valores atuais nessas áreas. Em 99/2000, esses valores
elevaram-se para mais de R$360 milhões (37% do orçamento).
Mais de quatro vezes, entre o inicio e o fim da década,
nos gastos e investimentos sociais. Ou seja, a presença
e a decisão popular foram fundamentais para este resultado
que cresceu mais do que o Orçamento como um todo, que
em valores constantes, mais que dobrou no mesmo período,
graças ao fim dos incentivos, das anistias fiscais e
de uma nova política tributária com base na progressividade
e justiça social.
Pela reivindicação e mobilização,
os Conselhos Municipais impuseram políticas públicas
na área da criança e da adolescência, na
área da saúde, da educação, determinando
mudanças qualitativas e quantitativas nos equipamentos
públicos ou nos convênios com as entidades comunitárias.
Um exemplo. Na metade do segundo mandato tínhamos pouquíssimos
programas com as entidades comunitárias que prestam serviços
para as crianças e adolescentes. Hoje, entre creches
e serviços de apoio sócio educativo estão
integradas mais de 160 entidades comunitárias que recebem
recursos públicos, atendendo milhares de crianças
e jovens, por decisão da população.
O mesmo pode-se dizer dos equipamentos de saúde ou no
crescimento na rede municipal de ensino, que nos colocou na
condição de capital mais alfabetizada do país.
O que a experiência nos ensinou nestes doze anos é
que questão democrática é central em qualquer
processo de enfrentamento ao neoliberalismo dominante. Por seu
potencial mobilizador e conscientizador, a democracia participativa
permite compreender o Estado, geri-lo e estabelecer um efeito
demonstração para outras lutas políticas.
Essa experiência recoloca o tema dos limites e insuficiências
do sistema representativo e a importância do retomarmos
o grande desafio sobre como construir a democracia participativa,
diminuindo as instâncias de delegação e
a burocratização que se consolidam com os sistemas
simplesmente representativos.
Por isso, a experiência do Orçamento Participativo
tem sido marcada por algumas características que lhe
dão grande força de referência.
A participação popular, universal, direta através
das instâncias regionais e temáticas em que a cidade
está dividida é a primeira delas. Outra é
a ação direta, a prática direta da cidadania
reunindo, discutindo, aprendendo a decidir coletivamente, a
organizar reuniões e hierarquizar reivindicações.
O terceiro elemento é a auto-organização
da população. A defesa de que a espontaneidade,
a criatividade e a participação não fiquem
limitadas ou subordinadas a leis votadas pelas Câmaras
Municipais.
Defendemos essa tese contra as investidas de deputados e vereadores
dos partidos conservadores que acionam até o Poder Judiciário
tentando caracterizar o processo como ilegal e contrário
à tradição representativa. Não admitem
que a população possa criar suas próprias
regras de participação que podem ser mudadas a
qualquer momento pelos próprios participantes.
O Regimento Interno do Orçamento Participativo construído
e aperfeiçoado ao longo desses doze anos, revela que
a população participando e decidindo pode construir
regras mais justas, mais solidárias, mais objetivas em
relação as carências sociais e de forma
mais democrática na definição do gasto
público.
Num mundo em que os países subdesenvolvidos perdem cada
vez mais sua soberania nacional, em que os grandes organismos
internacionais como a OMC, o FMI e o Banco Mundial são
instrumentos de corporações imperialistas e de
tecnocratas dos governos, nos quais o povo não vota nem
influencia, a soberania popular e a soberania de cada cidadão
restringem-se cada vez mais ao poder local e regional.
Resistir, defender e fazer avançar experiências
que não abdicam da soberania individual, da soberania
local, nos fortalecem e nos garantem sintonia com as lutas democráticas
e os interesses materiais comuns da maioria da população.
Esta é a tendência das grandes cidades, dos grandes
aglomerados urbanos que necessitam atender e são reivindicados
por milhões de habitantes em serviço e equipamentos
e isto não se faz sem a participação do
cidadão e o controle local e regional desses serviços
e obras.
Nossa vitória eleitoral no Rio Grande do Sul permitiu
que essa experiência fosse estendida em todo o Estado,
junto aos quinhentos municípios para elaborar e decidir
o Orçamento e o Plano de Investimento Estadual. Por estas
razões é que podemos afirmar que experiências
como o Orçamento Participativo e outras formas de democracia
participativa retomam o debate democrático histórico
da humanidade recolocando-o em um novo patamar, pela enorme
potencialidade das novas formas de comunicação
e informação contemporânea e porque a questão
democrática para os socialistas está livre agora
do víeis burocrático e do autoritarismo das experiências
do leste europeu.
O neoliberalismo por sua excludência e autoritarismo
é incompatível com a democracia e a soberania
popular. No Brasil, as Medidas Provisórias que o Presidente
decreta tornaram o Congresso Nacional um simulacro de sistema
representativo, conivente com a pedra da Soberania Nacional
e a ilegitimidade política.
A democracia participativa que construímos há
doze anos, agora reafirmada mais uma vez pelo voto popular em
Porto Alegre, hoje se reproduz em quase duas centenas de municípios
no Brasil.
Certamente não responde a todos os problemas do país
por seus limites municipais e regionais, mas seu método
de funcionamento prova que é possível, como fazemos
em Porto Alegre, ter políticas de inclusão social,
de combate ao desemprego, de reajustes bimestrais de salário
conforme a inflação, de manutenção
de empresas públicas que são ser superavitárias
e funcionam sob controle democrático, de equilíbrio
fiscal sem demissões de funcionários, de transparência
absoluta, com ética e sem corrupção, e
principalmente, de crescente popular nas formas de decisão
e construção das políticas públicas
que desenvolvemos na cidade.
Nossa participação nas redes internacionais de
cidades, nos Seminários Internacionais sobre Democracia
participativa e a realização do Fórum Social
Mundial nos tem demonstrado que não estamos sozinhos
e, que não são poucos os que acreditam que outro
mundo é possível.
Porto Alegre, Janeiro de 2001.
Raul Pont, Forum Social Mundial