No vocabulário da globalização, "desafios",
"riscos" e "problemas" são palavras
onipresentes. Se este registro faz um apelo à boa vontade
dos atores -- Estados, empresas, organizações
não-governamentais (ONGs), indivíduos -- para
"gerir", "levar em conta", "interpelar
as consciências" e se comportar de maneira cívica,
ele esvazia a análise da natureza econômica dos
"desafios" e dos mecanismos que permitiriam respondê-los
de maneira estruturada e eficaz.
Dois eixos de reflexão começam entretanto a emergir,
mesmo nos círculos mais neoliberais:
· o fato de que uma regulamentação excessivamente
tolerante num país faça com que seus custos (sociais,
econômicos ou ecológicos) atinjam outros países
é algo não somente injusto como ineficaz;
· as desigualdades crescentes comportam aquilo que os
economistas denominam de importantes "externalidades negativas":
a pobreza de uns mina a prosperidade de outros.
Esta análise se aplica, por exemplo, aos efeitos poluentes
que ultrapassam fronteiras, às epidemias, às privações
humanas (a miséria ou as violações dos
direitos fundamentais podem levar à emigração),
ou ainda ao direito dos negócios (os investidores buscam
garantias em um regime de propriedade intelectual, uma regulamentação
bancária etc.).
É preciso, portanto, repensar o equilíbrio entre
"privado" e "público", entre as atividades
dos atores "privados" no cenário global (que
comporta tanto os Estados como as grandes empresas, as ONGs
e os indivíduos) e o domínio público mundial.
Como tornar estes diferentes atores mais responsáveis
por seus atos -- e especialmente pelos danos que possam causar?
A importância dos acordos multilaterais
Esta reflexão impõe a invenção
de novas ferramentas intelectuais -- termos e conceitos que
mostrem que, na era da globalização, a resposta
às necessidades "privadas" (aí compreendidos
os interesses nacionais) passa cada vez mais pela realização
de objetivos comuns e pela cooperação internacional.
Neste sentido, o conceito de "bens públicos globais"
é especialmente útil.Existe uma primeira categoria,
tradicional, de bens públicos globais. São aqueles
que se encontram fora dos Estados, ou em suas fronteiras, e
cuja regulação constitui o que se convencionou
chamar um problema de "relações exteriores".
Por exemplo, o espaço e os oceanos, que existiam antes
de toda atividade humana, são regidos por regulamentações
internacionais. No século XVII, foram assinados os primeiros
tratados internacionais garantindo o livre acesso ao alto-mar.
Acordos deste tipo se multiplicarão com a intensificação
das atividades econômicas internacionais durante todo
o século XIX e no início do século XX:
transporte de mercadorias e de correspondência, telecomunicações,
aviação civil. Quando estes acordos são
multilaterais e de envergadura planetária, constituem-se
eles próprios num bem público global, uma vez
que criam um quadro regulamentar comum. Este primeiro tipo de
bens públicos globais é mais importante hoje do
que nunca, em razão do crescimento das atividades econômicas
internacionais e da globalização da técnica
e das comunicações (Internet).
Harmonização de políticas e mudanças
Entretanto, as questões mundiais que figuram no topo
das preocupações políticas constituem um
segundo tipo de bens públicos, que não estão
mais apenas "fora" dos Estados, mas atravessam fronteiras,
saindo assim do campo restrito das "relações
exteriores". Durante muito tempo, consideramos os bens
públicos naturais (a camada de ozônio, por exemplo)
como bens gratuitos, e consumimos estes bens de maneira desenfreada.
Medidas corretivas, como uma redução do uso de
clorofluorcarbonos (CFC) e de energias não renováveis,
devem agora ser aplicados em todas as partes no plano nacional.
Em um sentido, estes bens públicos globais, que se supunha
estarem "fora" dos limites nacionais, tornaram-se
problemas de política nacional. Por outro lado, bens
públicos tradicionalmente considerados como nacionais
(a saúde, a gestão de conhecimentos, a eficácia
do mercado, a estabilidade financeira, ou mesmo a lei, a ordem,
os direitos humanos ou a justiça econômica), ultrapassam
o domínio da soberania nacional. Se, por exemplo, a vigilância
de epidemias constitui, há mais de cem anos, um dos pivôs
da cooperação internacional, seu funcionamento
não pode mais apoiar-se sobre a simples coordenação
de sistemas nacionais de alarme. Pois alguns Estados podem ser
tentados a dispensar tais sistemas para dirigir seus orçamentos
para outras prioridades (ou para disfarçar suas dificuldades
sanitárias), fragilizando desta maneira o conjunto do
dispositivo. Dito de outro modo, estas questões de política
mundial exigem, mais do que acordos de princípio (como
aqueles que garantissem a liberdade de circulação
de navios estrangeiros em alto-mar), uma harmonização
de políticas nacionais e de mudanças efetivas
neste terreno.
Vocabulário vago e pouco conhecido
Vários fatores explicam a emergência deste novo
tipo de bens públicos globais. Inicialmente, a maior
abertura de fronteiras de todos os tempos facilitou a extensão
de "males globais": dumping social, desvalorização
competitiva, e até mesmo comportamentos de risco (o consumo
de tabaco, por exemplo). Em segundo lugar, a globalização
veicula um risco sistêmico global: volatilidade inerente
aos mercados financeiros internacionais, mudança climática
planetária, explosões políticas provocadas
pelo crescimento das desigualdades. Um terceiro fator é
o poderio crescente de atores não-estatais -- do setor
privado e de empresas transnacionais, mas também da sociedade
civil e de ONGs. Possuindo objetivos próprios, estes
atores transnacionais pressionam os governos a aderir a normas
políticas comuns, quer se trate de padrões técnicos
ou do respeito aos direitos humanos.Mas os especialistas e responsáveis
políticos sofrem com a ausência de instrumentos
em matéria de orientação pública,
e não desenvolveram ainda uma abordagem satisfatória
destas novas realidades. O próprio conceito de bens públicos
globais é pouco conhecido -- a terminologia para descrevê-los
e analisá-los também é pouco desenvolvida.
Em conseqüência disso, o vocabulário utilizado
é vago e as técnicas que permitiriam fazer emergir
os bens públicos globais são muito pouco conhecidas.
Como assegurar a produção de um bem? Em se tratando
de bens privados, investimento e produção são
em princípio motivados pela demanda; e as empresas privadas
planejam cuidadosamente sua produção para assegurar
eficácia e competitividade. Por outro lado, a demanda
de bens públicos -- e particularmente a demanda de bens
públicos globais -- é temperada pelo receio de
que nem todos venham a pagar a sua parte: é o problema
do "carona" ou free rider.Mas boas intenções
não bastam para produzir bens públicos globais.
O protocolo de Montreal, assinado em 1987 e que visa a reduzir
as emissões de CFC para lutar contra a destruição
da camada de ozônio, é uma rara exceção.
Seus objetivos são simples e ele define prescrições
claras, como uma ajuda internacional para que os países
mais pobres possam respeitar seus compromissos internacionais,
e penalidades (sob a forma de sanções comerciais)
para os países que não respeitarem tais prescrições.
A exemplo deste protocolo, existem estratégias de produção
de bens públicos globais, que são contudo pouco
conhecidas. 1
Iniciativas específicas e ações conjuntas
Três classes de bens comandam iniciativas específicas:
· Certos bens públicos globais, como o ar puro
(ou, mais modestamente, a redução de gases que
ameaçam a camada de ozônio), colocam em questão
a necessidade de uma "iniciativa adicional". Eles
não podem ser produzidos a não ser adicionando
um grande número de contribuições de igual
importância. Dito de outro modo, uma tonelada de gás
poluente economizada em Bangladesh é igual à mesma
quantidade economizada no Brasil, no Peru, nos Estados Unidos
ou na Alemanha. É claro que o objetivo não será
atingido a menos que todos os atores aceitem as mesmas regras,
fornecendo uma contribuição conforme as limitações
globais, seja in natura (reduzindo efetivamente suas emissões),
seja em espécie (comprando de outros países direitos
de emissão), seja seguindo a iniciativa preconizada pelos
Estados Unidos em Kyoto, em 1998;
· Para outros bens públicos, a ajuda ao elo mais
fraco da cadeia constitui a melhor estratégia. Por exemplo,
para prevenir a propagação de doenças contagiosas
ou para impedir atos de terrorismo internacional, todos os países
devem adotar conjuntamente medidas profiláticas. Se um
determinado país rompe a cadeia de prevenção,
os esforços dos outros serão em vão. O
custo do mal global que resultaria da ausência de ajuda,
sendo muito mais elevado que o custo da ajuda, mostra que é
mais eficaz (e não somente necessário) fornecer
um apoio aos agentes mais fracos da cadeia;
· Alguns bens públicos globais, sobretudo no domínio
do conhecimento, apóiam-se numa descoberta decisiva.
Assim, basta inventar a vacina contra a pólio em um
só lugar para poder utilizá-la em todo o mundo
-- sob a condição, contudo, que as patentes não
impeçam o acesso das populações mais pobres
às aplicações destas descobertas 2.Mas
a transformação de males públicos em bens
exige um esforço conjunto e sustentado, da base à
cúpula, de incontáveis atores.
Em todos estes casos, um trabalho integrado entre os diferentes
atores, tanto em nível nacional quanto no plano internacional,
é indispensável. O problema é que as orientações
decididas na maior parte dos países carregam a marca
de uma distinção bastante nítida entre
"interior" e "exterior". Tudo o que não
envolve diretamente relações exteriores -- políticas
ou comerciais -- é considerado como um assunto interno.
E quase tudo que envolve relações exteriores é
tratado pelo Executivo, especialmente pela esfera diplomática.
Estados atuam como agentes privados
Se, por um lado, nos últimos anos, certos países
colocaram em suas embaixadas especialistas que não pertencem
aos quadros diplomáticos (por exemplo, nos domínios
do meio ambiente, do comércio, das finanças ou
da luta contra o tráfico de drogas e o terrorismo), por
outro, esta evolução não modifica em nada
o caráter essencialmente tecnocrático da gestão
das relações internacionais.
Apesar da importância crescente dos bens públicos
globais, os Estados continuam a se comportar no cenário
internacional como atores privados: preocupam-se antes de tudo
com o interesse nacional e consideram freqüentemente que
a escolha do melhor, o mais racional para eles, é esperar
que os outros se decidam a produzir um tal bem público,
para depois se beneficiarem dele gratuitamente -- comportando-se
como o "carona".
Refletindo este desinteresse estrutural, o trabalho dos legisladores
nacionais permanece essencialmente reservado ao domínio
interno. Nas delegações que vão às
conferências ou aos congressos internacionais, com raras
exceções, os parlamentares brilham por sua ausência.
Freqüentemente, só tomam conhecimento dos acordos
internacionais quando estes estão prontos a ser traduzidos
para as suas respectivas legislações nacionais.
3 E às vezes até ignoram a existência de
certos acordos internacionais.
Por outra parte, os tomadores de decisões nacionais muitas
vezes não levam em conta os efeitos transnacionais de
suas decisões. Não há quase nada para o
meio ambiente além destas "externalidades"
e sua "interiorização" (a consideração
de seus custo) nos debates de orientação nacional.
Uma despesa de 8 trilhões de dólares
Não é surpreendente, portanto, que a cooperação
internacional receba com tanta freqüência verbas
orçamentárias insuficientes. Nos países
mais ricos, os fundos destinados aos trabalhos de preservação
do planeta -- assim como as intervenções em tempos
de crise financeira, a proteção da camada de ozônio
ou a luta contra o superaquecimento planetário -- saem
dos fundos de ajuda ao desenvolvimento ou dos fundos de emergência
destinados aos países pobres. Segundo algumas estimativas,
cerca de uma quarta parte dos 50 bilhões de dólares
destinados a cada ano à ajuda internacional ao desenvolvimento
são destinados às perspectivas globais, ou seja,
a atividades destinadas a manter um equilíbrio do mundo
mais do que a permitir aos países mais pobres responder
suas necessidades e interesses nacionais ("privados").
Uma reforma urgente, que possibilitasse a compreensão
das arbitragens que são feitas entre estes dois tipos
de ajuda exterior, consistiria em separá-las da contabilidade
pública.
Quanto aos países em desenvolvimento, é raro
que disponham de fundos para participar de projetos internacionais,
mesmo que eles pudessem se dar ao luxo de uma contribuição.
A despesa total anual da cooperação internacional
é da ordem de 12 a 15 bilhões de dólares,
enquanto a despesa pública total chega à casa
dos oito trilhões de dólares. Além disso,
mesmo que no futuro viesse a existir uma verdadeira vontade
política, os agentes de decisão se encontrariam
de mãos vazias, pela falta de ferramentas adequadas:
algumas poucas análises, raros estudos, poucas estatísticas
sobre as incidências transnacionais, uma profusão
de conflitos entre ministérios e escassos recursos para
concretizar as intenções.
Princípio de uma justiça mundial
O que propor então, diante deste quadro? Em primeiro
lugar, um estudo sistemático do conceito, a análise
dos efeitos dos bens públicos globais sobre a vida cotidiana.
Quais são, por exemplo, as repercussões da estabilidade
financeira sobre a situação do emprego e sobre
o sistema das aposentadorias? Quais são os efeitos do
crescimento das desigualdades sobre as migrações
internacionais e sobre a paz? Somente quando a opinião
pública perceber que seu bem-estar depende de bens públicos
globais e da cooperação internacional, os responsáveis
políticos sentirão que seus mandatos devem se
confrontar com estas necessidades, levando o "exterior"
(a camada de ozônio) para os temas problemáticos
nacionais e repensando o "interior" (a saúde,
as aposentadorias) como uma questão de política
internacional. Nesta perspectiva, a implicação
dos parlamentares nacionais em todas as decisões relacionadas
à cooperação internacional é uma
prioridade, quanto mais não seja para retirar estes problemas
do terreno do "externo", habitualmente confiado aos
tecnocratas, e remetê-lo ao domínio dos cidadãos.
Para tanto, uma condição prévia a toda
reflexão sobre os bens públicos globais é
a necessidade de fundá-la sobre o princípio de
uma justiça mundial. Mesmo que um bem global esteja revestido
de um caráter público, nem todos lhe atribuem
necessariamente o mesmo valor. Um banqueiro ocidental dará
uma prioridade elevada à estabilidade financeira, aprovando
o controle da malária por ocasião de suas viagens.
Ao contrário, um habitante do Sul preferirá que
se dê prioridade ao controle da doença em detrimento
da estabilidade financeira, uma vez que a volatilidade da moeda
afeta-o menos diretamente. Do mesmo modo, prioridades diferentes
podem ser estabelecidas, de um lado sobre a proteção
da propriedade intelectual, para priorizar os investimentos
de pesquisa privados, e de outro sobre a disseminação
de conhecimentos. Uma reflexão em termos de justiça
global deveria permitir conciliar estas duas exigências.
"Info-ricos" e "info-pobres"
Um programa de bens públicos globais deve levar em conta
de modo eqüitativo as prioridades das diferentes populações
envolvidas. E é preciso evidentemente que estes novos
bens públicos não agravem as desigualdades existentes.
A Internet é o exemplo mais evidente deste dilema: por
um lado, ela permite difundir o saber a um custo muito baixo;
e por outro, há a barreira que seu desenvolvimento provoca
entre "info-ricos" e "info-pobres".
De modo similar, a existência de um sistema de livre-comércio
-- em si, um bem público global -- prioriza, num mundo
desigual, os mais fortes, e suscita uma desconfiança
em torno da política mundial. A maior parte das negociações
internacionais trata dos bens públicos globais que interessam
mais aos países ricos, negligenciando os interesses de
outros países. As prioridades atribuídas a este
ou àquele bem público global são, portanto,
formuladas em função das preferências de
um clube de países ricos. A eqüidade é uma
dimensão importante da promoção dos bens
públicos globais, e não é de se espantar
que a desigualdade de representação de interesses
nas instâncias internacionais tenha sido denunciada nas
manifestações de Seattle e de Washington.
"Prioridades globais compartilhadas"
Além de seu valor instrumental, a justiça é
em si um bem público global. É um bem inesgotável
-- o fato de um indivíduo ser tratado com eqüidade
não diminui em nada as chances de um outro ser tratado
da mesma forma. Pelo contrário, quanto mais forem admitidos
e incentivados o princípio e a prática da eqüidade,
maior será a confiança de todos em poder se beneficiar
dela um dia. Sem uma justiça que, por definição,
deve se aplicar a todos os povos e em todas as regiões,
assim como entre todas as gerações, é inócuo
defender o interesse geral.
A noção de "prioridades globais compartilhadas"
existe há bastante tempo. E ela foi certamente uma fonte
de inspiração, após as duas grandes guerras
devastadoras do século XX. A criação da
Organização das Nações Unidas foi
motivada por esta perspectiva. Do mesmo modo, o Plano Marshall
de reconstrução da Europa e, seguindo o mesmo
modelo, o sistema internacional de ajuda ao desenvolvimento
para os países mais pobres. Já é tempo
que renasça esta idéia, sob a forma mais atual
dos "bens públicos globais". Esta noção
poderia desempenhar um papel decisivo na transformação
em realidade política de uma gestão da globalização
ainda no estágio de uma visão utópica ou
de encantamento ritual.
Inge Kaul, Le Monde Diplomatique
Economista e socióloga, diretora do Departamento de Estudos
sobre o Desenvolvimento, Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento (PNUD). Este artigo completa a obra Global
Public Goods. International Cooperation in the 21st Century,
dirigida pela autora, com Isabelle Grunberg e Marc A. Stern.
Editado por Oxford University Press, New York, 1999.
Traduzido por Marco Aurélio Weissheimer.
1 Ler, de Todd Sandler, "Global Challenges. An Approach
to Environmental, Political and Economic Problems", ed.
Cambridge University Press, Cambridge, 1997 -- para uma abordagem
rigorosa e completa do problema.
2 Ler, de Martine Bulard, "Les firmes pharmaceutiques organisent
l'apartheid sanitaire", Le Monde Diplomatique, janeiro
de 2000.
3 Podemos lembrar, por exemplo, que por ocasião da negociação
do Acordo Multilateral sobre Investimentos (AMI), o presidente
da Comissão de Relações Exteriores da Assembléia
Nacional francesa ignorava "quem negociava o quê
e em nome de quem" (Jack Lang, 4 de dezembro de 1997).