É preciso entender as implicações
políticas, jurídicas e éticas do problema
Muito mais do que uma disputa entre ecologistas e indústria
biotecnológica, a questão dos transgênicos
coloca frente a frente dois modelos de desenvolvimento econômico
e social.
A discussão envolvendo o desenvolvimento de organismos
geneticamente modificados (OGM), os transgênicos, extrapolou
o domínio estrito da comunidade científica e transformou-se
numa questão política estratégica.
A decisão do governo do Rio Grande do Sul no sentido
de proibir o cultivo de plantas transgênicas no estado
incendiou o debate. O governo gaúcho posicionou-se firmemente
contra a produção e consumo de alimentos geneticamente
modificados, somando-se ao esforço de inúmeras
entidades da sociedade civil que lutam contra a proliferação
dos transgênicos enquanto não se tem uma maior
clareza a respeito de seu impacto econômico e ambiental.
Francisco Milanez é uma das pessoas engajadas na luta
contra os transgênicos no Rio Grande do Sul. Ecologista,
biólogo, arquiteto, educador ambiental, planejador de
desenvolvimento, assessor de Meio Ambiente e Saneamento do Gabinete
do Prefeito e Coordenador do Programa Guaíba Vive, Milanez
entende que esta questão deve ser compreendida num contexto
maior de desenvolvimento estratégico. Antes de apresentar
alguns argumentos contra a euforia que tomou conta de uma parcela
da comunidade científica, ele procura traçar um
esboço do cenário que marca a entrada em cena
dos OGMs no mundo.
A pressão pelas leis de patentes
No final dos anos 80 começou a surgir uma forte pressão
internacional, capitaneada pelo Acordo Geral de Preços
e Tarifas (GATT), favorável à aprovação
do novo código de propriedade intelectual. Foram propostas
três grandes mudanças, nas áreas de programa
de computador, indústria farmacêutica e patenteamento
de seres vivos. Antes da aprovação do novo código,
o Congresso Nacional brasileiro viveu um intenso debate sobre
o tema. O governo brasileiro foi pressionado pelo governo dos
Estados Unidos a aprovar a nova legislação, recebendo
inclusive ameaças de represálias comerciais em
caso de resistência. O Brasil acabou aprovando o código
de propriedade intelectual, reconhecendo retroativamente patentes
que já eram de domínio público, e permitindo
o patenteamento de seres vivos transgênicos. No início
dos anos 90, foi criada a Organização Mundial
do Comércio (OMC), que tratou de aumentar a pressão
em favor do novo código. Em março de 1995, o Parlamento
Europeu recusou-se a votar o capítulo sobre patenteamento
de seres vivos, considerando anti-ética a mera discussão
do assunto.
Apesar da resistência européia, atualmente, nos
Estados Unidos e em outras partes do mundo, o processo de patenteamento
de seres vivos avança em ritmo acelerado. Estão
incluídos produtos transgênicos e não-transgênicos:
sangue, cereais de antigas civilizações, plantas
tropicais amazônicas, entre outros. A discussão
sobre os transgênicos serviu de pretexto para ampliar
o direito de patentes, diz Milanez.
Os transgênicos são organismos resultantes do
cruzamento de material genético de espécies diferentes.
A busca, através do cruzamento de novas variedades vegetais
a fim de obter plantas mais produtivas ou resistentes a pragas,
é antiga e habitual na agricultura de todas as sociedades.
As técnicas modernas de engenharia genética permitem
que se retirem genes de um organismo e se transfiram para uma
outra espécie. Esses genes "estrangeiros" modificam
a seqüência de DNA - que contém as características
de um ser vivo organismo receptor, que sofre um tipo de reprogramação,
transformando-se em uma nova espécie.
Estes novos seres são os chamados transgênicos,
ou organismos geneticamente modificados (OGMs). Soja combinada
com bactéria, milho combinado com escorpião, peixes
com gene de morango, são algumas das estranhas misturas
que se tornaram realidade pelas técnicas da engenharia
genética que permitem cruzamentos que antes não
existiam na natureza.
Uma evolução sem harmonia
São seres que não passaram pelo lento processo
de evolução das espécies e que são
introduzidos na natureza de modo abrupto. Para Francisco Milanez,
este é um dos principais problemas desta técnica.
Segundo ele, a introdução de seres criados em
laboratório através do cruzamento de material
genético de espécies distintas origina um fator
de desequilíbrio no ambiente natural. "Estes novos
seres não terão passado pelo processo de evolução
harmoniosa das espécies. Por essa razão, representam
um risco ambiental estrutural. Mesmo que não saiam matando
diretamente, eles vão ocupar o lugar de outros seres
naturais, seja pela eliminação direta, seja por
um enfraquecimento progressivo. A introdução crescente
de organismos geneticamente modificados, em larga escala, resultará
na redução da biodiversidade natural".
Os defensores dos transgênicos falam da vantagem competitiva,
econômica, que seria resultante da sua implantação,
principalmente no que diz respeito aos alimentos transgênicos.
Mas esta suposta vantagem, alerta Milanez, não é
livre de riscos. "Criados em laboratórios, já
representam um risco,considerando a possibilidade de acidentes.
Microorganismos com material genético humano podem, por
exemplo, não ser mais reconhecidos como invasores pelo
sistema imunológico humano. O risco das espécies
agrícolas é bem maior, pois, uma vez colocadas
na natureza, as possibilidades de um controle adequado são
mínimas. A soja transgênica pode cruzar com outra
espécie de soja, gerando uma outra não desejada.
Isso pode ocorrer através do pólen, que normalmente
se espalha por uma certa área. Com a ajuda do vento e
de outros agentes naturais, o pólen pode ir para bem
mais longe. E devemos considerar também que a soja é
uma planta exótica. O risco é bem maior quando
se trata de plantas nativas, podendo afetar as bases naturais
de uma determinada região".
Hegemonia destrutiva
Milanez enfatiza o risco ambiental da adoção
da nova técnica: "a hegemonia de uma espécie
transgênica pode destruir rapidamente a diversidade interna
da espécie natural, empobrecendo-a e tornando-a mais
suscetível a todo tipo de problema. O topo deste processo
é a clonagem, que permite a criação de
centenas de indivíduos iguais, como é o caso das
matas de eucalipto plantadas, no próprio Rio Grande do
Sul, pela multinacional Riocell. Se um indivíduo for
afetado por alguma doença, todo o conjunto o será,
uma vez que a diversidade entre os indivíduos foi eliminada".
Ele lembra que o Rio Grande do Sul tinha centenas de variedades
de milho, adaptadas às particularidades de cada região.
"Isto tudo foi sendo perdido com o surgimento do milho
híbrido", diz o biólogo. "A segunda
geração de milho híbrido gera indivíduos
que não possuem as propriedades da primeira. Assim, a
cada plantio, é preciso comprar um novo lote de sementes
de híbrido. As centenas de varietais de milho foram reduzidas
a umas poucas. As outras viraram ração para galinhas
e porcos. Hoje, está se tentando recompor algumas destas
variedades, mas este processo de recomposição
é lento, ao contrário do caminho da destruição".
O poder da Monsanto e a reação das sociedades
Grandes empresas multinacionais, como a Monsanto, a Novartis
e a AgrEvo, estão investindo milhões de dólares
em pesquisas sobre transgênicos.
Algumas das novas plantas criadas através destas pesquisas
foram desenvolvidas para serem resistentes a agrotóxicos
que estas mesmas empresas fabricam. O problema é que
as conseqüências do uso destas plantas, modificadas
geneticamente, na agricultura, no meio ambiente e na saúde
do consumidor ainda não são suficientemente conhecidas.
E quanto mais se pesquisa, mais se descobre que podem trazer
problemas. Suspeita-se, por exemplo, que a soja misturada com
genes de bactérias esteja aumentando as alergias. O milho,
outra planta fundamental para a alimentação humana,
foi cruzado com uma bactéria para ter poder inseticida.
Descobriu-serecentemente que ele mata outros insetos, e não
apenas a praga para o qual foi desenvolvido, podendo acarretar
graves danos ao equilíbrio dos ecossistemas nos quais
foi introduzido.
Nos Estados Unidos, atualmente, os produtos transgênicos
são vendidos misturados aos normais. Mas na Europa, os
transgênicos estão sendo rejeitados pela maioria
dos consumidores. Por isso, grandes empresas de alimentos, como
Unilever, Nestlé, Danone e Barilla, bem como grandes
redes de supermercados, como Carrefour na França e Sainsbury,
Tesco e Iceland na Inglaterra, anunciaram que não vão
vender este tipo de produto para seus clientes. No Brasil, oficialmente,
não se planta nenhum transgênico. No entanto, as
multinacionais estão fazendo uma forte pressão
para que o governo libere a venda de soja transgênica,
mesmo sem terem realizado os testes necessários para
avaliar os impactos na saúde e no ambiente. Além
desses riscos, a plantação de transgênicos
pode trazer prejuízos à economia brasileira, já
que os países europeus, nossos maiores importadores,
não querem esse tipo de produto.
O fator soja
A chegada ao Brasil da soja transgênica resistente ao
Roundup também preocupa o engenheiro agrônomo Sebastião
Pinheiro. Em sua "Cartilha sobre Transgênicos",
ele observa que o Roundup é um herbicida da Monsanto
que mata qualquer planta, inclusive a soja. Mas a soja transgênica,
produzida pela mesma empresa, que recebeu um gene resistente
ao Roundup encontrado em algas e bactérias, não
morre quando se utiliza este agrotóxico para eliminar
as ervas daninhas na lavoura. De acordo com o pesquisador, as
indústrias passarão a criar cada dia mais produtos
e tornar sua soja viciadas neles, deixando o agricultor à
mercê do mercado e sem apoio oficial para investir na
agricultura ecológica, o que provocará uma maior
contaminação do solo, da água e dos alimentos.
O plantio da soja transgênica foi endossado pela Comissão
Técnica Nacional de Biossegurança, órgão
do Ministério da Ciência e Tecnologia, mas sua
autorização foi impedida por uma liminar concedida
pela Justiça. A linhagem em questão é a
GTS 40-30-2, mais conhecida como Roundup Ready, ou soja RR.
Ela foi obtida a partir da inserção de três
genes "estrangeiros" na planta da soja. Um deles foi
extraído de um vírus e um outro de uma bactéria
encontrada no solo, a Agrobacterium sp. Essa modificação
genética não incrementa a produtividade da cultura,
ou o valor nutricional do grão. O efeito conhecido desse
gene, alegado como economicamente vantajoso, consiste em possibilitar
a substituição de vários herbicidas por
apenas um, o Roundup, da Monsanto.
Perigosa e cada vez mais poderosa
O glifosato - cujo nome comercial é Roundup - é
a terceira maior causa de problemas de saúde em agricultores
norte-americanos, em virtude do alto grau de alergias de vários
tipos que provoca. Quando no solo, mantém um poder residual
por grandes períodos, afetando também os lençóis
freáticos. Cerca de 70% dos alimentos processados têm
soja ou milho entre seus ingredientes. A soja está presente
em cerca de 60% dos alimentos vendidos nos supermercados.
A Monsanto é a maior produtora de herbicidas do mundo,
e está entre as cem empresas mais lucrativas dos EUA.
Apenas nos últimos dois anos, investiu US$ 6,7 bilhões
na aquisição de outras companhias norte-americanas
de sementes e biotecnologia, tornando-se a maior empresa do
ramo. No Brasil, após a aprovação da Lei
de Cultivares, que instituiu o monopólio privado da propriedade
das variedades vegetais no país, a Monsanto comprou,
dentre outras, a empresa Paraná Sementes e a Agroceres.
Formou ainda uma joint-venture com a Cargill, consolidando sua
supremacia entre as empresas produtoras de sementes no país.
Recentemente, a Monsanto gastou cerca de US$ 18 bilhões
na compra da multinacional Delta&Pine Land, proprietária
da patente da tecnologia "Terminator" nos EUA e solicitante
da patente mundial deste gene. O gene batizado de "Terminator"
(exterminador) torna estéril a segunda geração
de sementes usadas na agricultura. É uma técnica
que incapacita geneticamente a germinação de uma
semente. A eficácia do novo método já foi
demonstrada em sementes de algodão e fumo, sendo que
entre as culturas prioritárias para seu desenvolvimento
estão o arroz, o trigo, o sorgo e a soja.
Adeus às sementes
O principal interesse econômico nessa técnica
é impedir que o fruto ou grão de uma variedade
comercial se torne uma semente, exterminando assim o potencial
reprodutivo daquela planta. Os agricultores, que então
seriam obrigados a adquirir novas sementes a cada safra, deixariam
ainda de exercer o papel que vêm desempenhando há
mais de dez mil anos: o trabalho de melhoramento das variedades
realizado através de cruzamentos e seleção
de sementes. A posição adotada pelo governo Olívio
Dutra, no Rio Grande do Sul, bate de frente com a estratégia
destas grandes corporações e já está
gerando uma ferrenha disputa judicial e política. O Rio
Grande do Sul produz 22% da soja brasileira. Somados aos 9%
produzidos pelo Mato Grosso do Sul, outro estado importante
na produção de soja (e também governado
pelo PT), pelo menos 31% da soja produzida no Brasil seria "OGM
free" (não-transgênica). Em vários
países europeus há pressões para diferenciar
a soja transgênica da não-transgênica, com
diferenciação de preços. A tendência
é que a soja convencional obtenha melhores preços.
Há referências de preços significativamente
maiores da soja convencional em relação à
soja transgênica. Assim, observa Francisco Milanez, além
de levar em conta preocupações de caráter
ético e ambiental, a postura do governo gaúcho
pode resultar num ganho econômico para os produtores do
Estado.
O cronograma das disputas judiciais
24/07/98 - A 6ª Vara da Justiça Federal de Brasília,
deferindo parcialmente liminar impetrada pelo Greenpeace (reivindicava
suspensão da comercialização de óleo
feito a partir de soja transgênica, produzido pela Ceval),
determinou que a Associação Brasileira de Óleos
Vegetais (Abiove) modificasse os rótulos de todos os
óleos feitos a base de sementes de soja transgênica,
para que as embalagens trouxessem informações
sobre a composição do óleo e sobre os riscos
à saúde. A autorização para comercialização
do óleo de soja transgênica havia sido dada à
Ceval pela CNTBio em setembro de 1997, quando foi importado
1,5 milhão de toneladas de soja dos EUA (15% desse produto
era modificado geneticamente).
16/09/98 - A 11ª Vara da Justiça Federal, aplicando
o princípio da precaução, concedeu liminar
ao Instituto de Defesa do Consumidor proibindo a União
de autorizar o plantio de soja transgênica enquanto não
regulamentar a comercialização de produtos geneticamente
modificados e realizar estudo prévio de impacto ambiental
(EIA-RIMA).
24/09/98 - A CNTBio emite parecer favorável ao uso comercial
da soja Roundup Ready. Segundo o parecer, não há
risco ambiental no cultivo nem risco para a segurança
alimentar no consumo da soja geneticamente modificada. Treze
dos quinze membros presentes votaram pela liberação
(o representante dos consumidores votou contra e o Ministério
das Relações Exteriores se absteve). Apesar do
parecer favorável, a liminar concedida em 16/09 impede
que o Ministério da Agricultura dê à Monsanto
o registro para que comece a produção de soja
transgênica.
Endereços na Internet
Maiores informações sobre a questão dos
transgênicos podem ser obtidas na Internet, nos seguintes
endereços:
1.Www.pangea.org/acciecol/genetica/monsanto.htm A Pangea -
Comunicação pela Cooperação - é
uma ONG espanhola cujo principal objetivo é favorecer
a comunicação através da Internet. A Pangea
traz informações sobre meio ambiente, direitos
humanos, Internet, educação, cultura, etc.
2.www.estado.rs.gov.br Página da Secretaria da Agricultura
do Estado do Rio Grande do Sul.
3.www.ufrpe.br/~agrisust/transgenicos.htm Lista de Agricultura
Sustentável. Traz artigos sobre o tema e o projeto de
lei tratando de transgênicos.
4.www.sbpcnet.org.br/forum8/forum8.htm Fórum de discussão
organizado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
(SBPC) sobre "Plantas transgênicas: riscos e benefícios".
Marco Weissheimer
Marco Aurélio Weissheimer é jornalista em Porto
Alegre