Juízes independentes ou funcionários subordinados
 

 

Um acúmulo impressionante de iniciativas e medidas governamentais vêm derruindo entre nós o Estado de Direito Democrático, sem que se esboce a menor reação, quer no povo, quer nos órgãos estatais.

O Congresso Nacional, já de há muito, entregou-se à inteira discrição do Executivo, que dita doravante, como senhor único, os rumos da política nacional em todas as áreas. Restam pois, como últimos bastiões em defesa da democracia, o Poder Judiciário e o Ministério Público. Mas até quando saberão resistir? Alguns fatos inquietantes denotam um progressivo enfraquecimento desses dois órgãos, na esfera federal, compelindo-os a aceitar o humilhante status de vassalos do Governo. Se nada for feito para contra-arrestar essa perigosa tendência à monopolização do poder na esfera governamental, teremos dentro em pouco abolido a vigência da Constituição de 1988, e com ela o próprio regime democrático.

Raramente na vida política brasileira, tal como hoje, tem sido tão necessário e urgente entender, em seu pleno sentido axiológico e funcional, a independência da magistratura. O regime mlitar, em seu tempo de fastígio, não hesitou em suspendê-la, como estorvo ao programa de supressão das liberdades individuais. Com isto, porém, só reforçou, paradoxalmente, a autoridade do Poder Judiciário na consciência dos cidadãos. Agora, Legislativo e Executivo, com a colaboração reprovável de altos tribunais, agem de modo subreptício e, por isso mesmo, mais deletério: solapam a dignidade dos juízes, com o indisfarçado intuito de transformá-los em dóceis instrumentos de proteção jurídica às políticas governamentais.

Ninguém ignora que a independência da magistratura é uma das mais importantes garantias do sistema de proteção aos direitos humanos. Seria um verdadeiro escárnio se o nosso País, exatamente no cinqüentenário da Declaração Universal dos Direitos do Homem, desse às novas gerações de brasileiros, com a supressão prática de um Judiciário independente, o triste espetáculo de uma involução institucional na defesa da dignidade humana.

A noção de garantia institucional foi elaborada pela doutrina alemã, no período em que vigeu a Constituição de Weimar1. Os grandes juristas da época demonstraram que a proteção dos direitos fundamentais (Grundrechte), ou seja, dos direitos humanos positivados na Constituição, não se realiza apnas por meio de garantias subjetivas, ou remédios judiciais, como o habeas-corpus, mas que ela é também alcançada com a existência de determinadas instituições no ordenamento estatal, criadas para essa finalidade.

Tal é o caso, paradigmaticamente, da divisão de poderes na esfera estatal. O vínculo dessa instituição com a proteção dos direitos humanos é tão íntimo que os revolucionários franceses de 1789 puderam proclamar que "toda sociedade, na qual a garantia dos direitos não é assegurada, nem a separação dos poderes determinada, não tem constituição" (Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, art. 16). Pois essa é, afinal, a finalidade precípua de uma Constituição escrita, tal como a conceberam os norte-americanos em fins do século XVIII: ela não existe para reforçar o poder dos governantes, mas bem ao contrário para impedir o abuso de poder.

Tanto as garantias subjetivas, quanto as institucionais, formam o sistema das garantias fundamentais, organizado em nível constitucional. Nessa qualidade, elas possuem as mesmas características dos direitos fundamentais, das quais são complementares, o que as coloca numa posição de "sobredireito" (Überrrecht), como dizem os alemães. Com efeito, substancialmente, elas são meios de proteção da dignidade humana, que é o valor supremo do ordenamento jurídico. Formalmente, as garantias fundamentais não podem ser suprimidas pelo Poder Legislativo, nem mesmo no exercício de sua competência de reforma constitucional, uma vez que elas formam a base ética do regime político.

Uma leitura superficial e isolada do art. 60 da Constituição Federal, porém, tem levado alguns a entender que apenas os direitos e garantias individuais estariam abrangidos por essa limitação material ao exercício do poder de reforma constitucional pelo Legislativo. Não se percebe, com esse raciocínio, que a norma do art. 60 é mera aplicação dos princípios constitucionais supremos, consignados nos arts. 1º e 3º, princípios esses que nenhum poder constituído pode jamais alterar. Ora, a independência da magistratura constitui uma das garantias institucionais de nosso regime político; ou seja, uma das formas estruturais de organização do Estado, pelas quais se garante a dignidade da pessoa humana (Constituição, art. 1º, III).

Não se está, pois, aqui diante de um privilégio estamental ou corporativo2. A independência dos magistrados não existe para beneficiá-los, colocando-os em posição superior à dos demais agentes ou servidores do Estado. Ela é estabelecida exclusivamente em benefício do povo, enquanto titular da soberania política, e para a proteção dos direitos humanos. O Judiciário atua, nesse sentido, como um contra-poder, uma espécie de freio institucional à tendência incoercível ao abuso, que se manifesta em todos os órgãos do Estado. É exatamente nesse sentido que se há de entender a afirmação, tantas vezes comentada, de Montesquieu, segundo a qual o Judiciário, contrariamente aos demais órgãos do Estado, não teria poder algum3.

Como toda garantia institucional, a independência da magistratura não só é irreformável por via do chamado poder constituinte derivado, como não pode nem mesmo ser de alguma forma enfraquecida ou desgastada, pois tal seria atentar indiretamente contra a dignidade da pessoa humana. Não basta, pois, manter intocadas as normas constitucionais que protegem a magistratura das pressões ou interferências governamentais. Ainda é preciso que não sejam tomadas medidas, ainda que formalmente constitucionais, que representem a negação prática da independência dos juízes.

Geralmente, entre nós, só se fala no aspecto subjetivo da independência dos magistrados. As Constituições brasileiras, com efeito, têm se limitado a declarar explicitamente tão-só as garantias de vitaliciedade, inamobilidade e irredutibilidade de vencimentos, as quais existem, historicamente, como proteção dos juízes contra o arbítrio do Poder Executivo. A importância dessas garantias subjetivas é, sem dúvida, manifesta em nosso meio, onde a onipotência do Executivo, como bem salientou Joaquim Nabuco, tem sido efetivamente "o traço saliente do nosso sistema político"4.

Mas a independência dos magistrados não se esgota aí. Fundamentalmente, ela se encontra no princípio expresso, em forma lapidar, pela Lei Fundamental alemã de 1949, ao dispor que "os juízes são independentes e submetidos unicamente à lei" (art. 97). Este o ponto essencial. A independência objetiva da magistratura (sachliche Unabhängigkeit) significa a não submissão dos juízes a ordens ou interferências de quem quer que seja, quer de fora, quer de dentro do Poder Judiciário5.

Como assentou a Corte Constitucional alemã, em sucessivos arestos, os juízes não têm superiores hierárquicos6, e nisto difere o Judiciário substancialmente da Administração Pública, onde impera, como sabido, o princípio oposto, do poder escalonado7.

Um juiz de primeira instância não está em posição de receber ordens ou instruções do Tribunal de Justiça, como se fora seu subordinado. O magistrado deve submeter-se unicamente à lei e à sua consciência. É isto que garante ao jurisdicionado a impessoalidade de julgamento, sem a qual não se faz justiça.

Ao contrário do que a muitos parece, o princípio do duplo grau de jurisdição não representa uma manifestação funcional, mas sim um reforço da impessoalidade de julgamento. A rigor, a competência em grau de recurso pode, perfeitamente, ser atribuída a magistrados situados no mesmo nível de carreira, pois o que se quer assegurar é um segundo julgamento da causa por parte de outro magistrado ou grupo de magistrados, não a revisão da sentença por uma autoridade superior.

Não resta dúvida, pois, que os juízes de primeira instância, que acatam ordens emanadas de tribunais, ou, inversamente, os ministros ou desembargadores que determinam o teor das sentenças a serem dadas em primeira instância, estão prevaricando no exercício de suas altas funções constitucionais8.

Tudo isso, afinal, é cediço e não precisaria ser lembrado, se não crescesse perigosamente entre nós a tendência a se criarem vínculos de subordinação dos juízes de primeira instância aos ditames ou orientações dos tribunais.

De um lado, têm-se visto situações aberrantes, em que Conselhos Superiores da Magistratura atribuem-se, em cerimônia, competência para ditar instruções decisórias aos juízes de primeira instância, chegando ao extremo abuso de aplicar punições aos magistrados que as descumprem. Escusa dizer que tal procedimento, além de constituir grosseira violação da garantia institucional da independência dos magistrados, afronta a própria Lei Orgância da Magistratura Nacional, pois esta não define, como é óbvio, nenhum dever aos magistrados de obediência a ordens ou instruções de julgamento ditadas por outros órgãos do Judiciário. "Quem quer que saiba, ao menos em confuso, destas coisas", fulminou Rui Barbosa9, "não ignorará que todos os juízes deste mundo gozam, como juízes, pela natureza essencial às suas funções, do benefício de não poderem incorrer em responsabilidade pela inteligência, que derem às leis de que são aplicadores".
De outro lado, contando com a cumplicidade do Supremo Tribunal Federal, o Poder Executivo empenha-se em reformar novamente a Constituição para instituir a chamada súmula vinculante. Uma vez aceita pelo Congresso essa proposta de emenda inconstitucional, como parece provável, teremos consolidado em definitivo a subordinação hierárquica dos juízes de primeira instância aos tribunais. A opinião jurisprudencial tomará doravante o lugar da lei, como fonte primária de todo direito. Para sermos conseqüentes, deveríamos desde logo revogar o disposto no art. 1º, parágrafo único, da Constituição, pois o poder político já não emanará do povo e, sim, da vontade incontrolada dos tribunais. Mas serão eles, pelo menos, soberanos em suas decisões? É pouco provável. O que se não percebe, em todo esse tortuoso processo, é que o Judiciário deixa aos poucos de ser o supremo custódio dos demais órgãos do Estado, para se tornar uma simples peça na engrenagem de concentração fatal de poderes nas mãos do Executivo. Com a mal denominada ação declaratória de constitucionalidade, criada pela emenda constitucional nº 3, o Supremo Tribunal Federal já recebeu o poder de bloquear antecipadamente, num processo sem contraditório, todas as demandas judiciais que o governo considere contrárias à sua política.

Não contente em haver assim transformado o supremo tribunal do País em órgão de consulta, o Presidente da República, por meio de medida provisória (nº 1.570, editada inicialmente em maio de 1997), ou seja, legislando em causa própria, subtraiu a Fazenda Pública à aplicação da tutela antecipada pelos juízes de primeira instância. Tudo indica, agora, que o próximo passo consistirá em suprimir toda e qualquer decisão liminar nas ações populares.

A situação fica, portanto, muito clara. Doravante, os juízes brasileiros já não devem julgar segundo a Constituição e as leis, mas apenas em função do critério da "governabilidade", tal como, durante o regime militar, tudo se fazia em nome da "segurança nacional". Nesse diapasão, seria certamente mais lógico e menos custoso substituir desde logo o Poder Judiciário por um contensioso administrativo, organizado conforme os desejos e conveniências do governo.

Fábio Konder Comparato
Professor Titular da Faculdade de Direito da USP, Doutor em Direito da Universidade de Paris e Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra

1 O professor KARL STERN, da Universidade de Colônia, retraçou a história dessa elaboração doutrinária em sua obra Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, III/1, Allgemeine Lehren der Grundrechte, Munique (Beck), 1988, § 68. Entre nós, ocupou-se do assunto o Professor PAULO BONAVIDES, em seu Curso de Direito Constitucional, 7ª ed., São Paulo (Malheiros), cap. 15.
2 "Sind und Zweck der richterlichen Unabhängigkeit werden auch verkannt, wenn man sie als Standesprivileg auffaßt. Die Unabhängigkeit wird den Richtern nicht gewährleistet, um einen von der übrigen Gesellschaft abgehobenen besonderen Stand zu schaffen, sondern um des Volkes willen, dem nur durch unabhängige Gerichte Recht gesprochen werden soll" ("Reike Alternativkommentare, Kommentar zum Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland, 2ª ed., Luchterhand, 1989, vol. 2, p. 1.127).
3 "Des trois puissances dont nous avons parlé, celle de juger est en quelque façon nulle" (De l'Esprit des Lois, livro XI, cap. VI). Nesse mesmo sentido, MONTESQUIEU sustentou que o Poder Judiciário deveria ser confiado, como em Atenas, a pessoas tiradas do seio do povo e por um tempo limitado. "De cette façon, la puissance de juger, si terrible parmi les hommes, n'étant attachée ni à un certain état, ni à une certaine profession, devient, pour ainsi dire, invisible et nulle. On n'a point continuellement des juges devant les yeux; et l'on craint la magistrature, et non pas les magistrats."
4 Um Estadista do Império, Rio de Janeiro (Editora Nova Aguilar), 1975, p. 239.
5 Sic, KONRAD HESSE, Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland, 20ª ed., Heidelberg (C.F. Müller), 1995, p. 237; Reihe Kommentar, cit., vol.2, pp. 1.127 ss.
6 REihe Kommentar, cit., ibidem.
7 "Hierarquia é a relação de subordinação existente entre os vários órgãos e agentes do Executivo, com a distribuição de funções e a gradação da autoriade de cada. Dessa conceituação resulta que não há hierarquia no Judiciário e no Legislativo, pois ela é privativa da função executiva, como elemento típico da organização e ordenação dos serviços administrativos"(HELY LOPES MEIRELLES, Direito Administrativo Brasileiro, 16ª ed., São Paulo (Revista dos Tribunais), p. 100).
8 No auge da disputa em torno da privatização da Companhia Vale do Doce, um Ministro do Superior Tribunal de Justiça chegou a ordenar por telefone, a um magistrado de primeira instância, que não concedesse a medida liminar de suspensão do leilão em Bolsa.
9 Discurso de posse na presidência do Instituto dos Advogados Brasileiros, em 19 de dezembro de 1914, Obras Completas, vol. XLI, t. IV, p. 234.

 




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