Direitos humanos, globalização e pobreza
 

 

O tema deste seminário estabelece a conexão entre o atual estágio do capitalismo, na fase da globalização, e a pobreza, intermediados pelo conceito de direitos humanos. A categoria dos direitos humanos nos permite oferecer uma crítica moral ao capitalismo, tal como vem se apresentando, incapaz de oferecer uma resposta à questão dos excluídos. Somente nesta nossa América Latina, 60% da população, 300 milhões de pessoas, vivem vidas sombrias, privadas de mínimas condições para o exercício da cidadania, porque sequer conseguem alcançar a linha da pobreza. Um fantasma ronda o Primeiro Mundo - a massa de excluídos, imigrantes sem inserção social, trabalhadores desempregados, jovens sem perspectiva, todos atirados na marginalidade.

Abraçar a causa dos direitos humanos significa condenar qualquer política que não apresente como objetivo imediato a inclusão dos excluídos. Não desconhecemos como quase todo o globo foi tomado por um projeto que tem como um dos pilares a consolidação de um exército de excluídos, para que o mercado possa funcionar sem qualquer freio ou amarra. Sabemos os aspectos terríveis dessa política: contenção de gastos com o bem-estar social, restauração de uma taxa dita "natural" de desemprego destinada a quebrar a resistência dos sindicatos, redução de impostos para os mais ricos. E assim, o jornal de ontem noticia em manchete de primeira página o número de 1 bilhão de desempregados em todo o mundo, praticamente 1/3 da força de trabalho.

Pretende-se que a liberdade do mercado seja o valor absoluto a subordinar toda sociedade. Como afirmou ALAIN TOURAINE, o conceito de sociedade ficou reduzido ao conceito de mercado, o que não pode se harmonizar com a idéia de democracia. A autonomia absoluta dos agentes econômicos não é compatível com a autonomia de cidadãos, conceito chave da democracia, que pressupõe indivíduos reunindo condições dignas de vida - trabalho, moradia, saúde, acesso aos bens culturais - para o exercício real de seus direitos de cidadão.

O que há de mais assustador em tal panorama é a força avassaladora desse conceito de soberania do mercado, que arrisca se tornar universalmente hegemônico. Hegemonia brutal que lembra uma nova Idade Média; apenas que, em vez do teocentrismo católico medieval, um "mercadocentrismo", a uniformização estéril da sociedade, por meio da afirmação de um conceito totalizante, subordinador de toda vida social e individual. A comparação é pertinente por outro lado. Vendo os incluídos de hoje, não podemos deixar de recordar os incluídos da Idade Média, enclausurados em seus castelos, rodeados por uma população miserável, dizimada pela fome, pela violência, pelas doenças, abandonada à própria sorte.

O conceito moderno de Estado, tal como posto pelos jusnaturalistas racionalistas, de HOBBES a ROUSSEAU e KANT, forjou-se a partir da crítica a esse mundo antigo. O moderno passou a ser pensar a sociedade como um conjunto de cidadãos livres e iguais, organizados segundo a premissa de exclusão de privilégios, e governados por políticas que somente se legitimavam se orientadas para a totalidade dos cidadãos. Na verdade, se pensarmos bem, o que preside tal concepção de política e direito nada mais é que o milenar conceito de PLATÃO sobre governo e justiça. Lembremos o que vem dito no Livro I da República: assim como o médico visa a saúde do paciente e o arquiteto visa a casa, o governo visa o benefício do mais fraco, e não do mais forte. Essa é a sua arte, a sua perícia. O governo que não beneficia o mais fraco é como o médico que promove a doença e não a saúde do paciente, ou o arquiteto que destrói a casa em vez de construí-la. Agostinho recuperou esse conceito platônico ao dizer que governo sem justiça é como uma quadrilha de piratas.

Vivemos um tempo sombrio e angustiante. O projeto que se apresenta hoje como hegemônico contraria tal noção de justiça e governo. Propugna que governar é criar condições para que os mais ricos acumulem e tem como inevitável conseqüência a manutenção de uma massa formidável de excluídos. Contraria o conceito de que o governo deve ter uma política para os excluídos, o que deveria ser a própria razão de ser dos governos. Isso, que há pouco tempo era o requisito de legitimação de qualquer governo, transformou-se, por força dessa avassaladora hegemonia ideológica, em requisito de satanização do Estado. Querem, ainda, subverter nas nossas consciências o conceito de justiça social. Impossível não lembrar a novilíngua do império imaginado por GEORGE ORWELL em "1984" - o feio queria dizer bonito, a tristeza queria dizer alegria, o ruim queria dizer bom. A injustiça quer dizer justiça. A ironia é que ORWELL pensava no socialismo e acabou prevendo o futuro do capitalismo.

Lançando um olhar para tal escuridão, ocorre ser absolutamente necessária a radical, intransigente, inflexível, defesa de alguns princípios.

Em primeiro lugar, estabelecer o verdadeiro conceito de liberdade. A liberdade não se resolve na autonomia dos agentes econômicos no mercado. A autonomia total dos agentes econômicos no mercado significa a submissão dos cidadãos a leis que não lhes permitem tomar em suas mãos o próprio destino. A liberdade de que falamos é a autonomia de cidadãos voltados para a descoberta e exploração de suas próprias potencialidades, materiais e espirituais, ostentando a condição humana digna, e, portanto, sendo o próprio fim da sociedade, e não meio para a concretização das leis do mercado.

Em segundo lugar, jamais admitir a desigualdade como valor, mas sim pensar a sua supressão como fim posto pela própria sociedade. A desigualdade, por definição, sempre acarreta a submissão de um indivíduo a outro, ou de segmentos sociais a outros. Portanto, atinge em cheio o valor da liberdade.

Em terceiro lugar, jamais transigir na defesa da democracia. Democracia é a autodeterminação de um povo, e seu conteúdo é a existência de cidadãos capazes de exercer direitos. Assim, ter plenas condições materiais de vida para o exercício da cidadania é o objeto da democracia, mas é também sua condição.
Esses princípios traduzem, em outros termos, o conceito de soberania de um povo. O Estado soberano deve ser a expressão política da sociedade organizada, que se legitima ao pôr-se como fim a efetivação dos princípios da liberdade, da igualdade e da democracia, traduzindo-se no bem-estar de cada cidadão. Transformar a experiência social em dimensão concreta desses valores é o fim e a razão de ser do Estado.
Estamos às voltas com o tema da globalização. Parece que temos à frente um mercado único, transcendendo os limites do tradicional Estado-nação. É preciso aqui lançar uma advertência aos temerários arautos da objetividade, aqueles que se põem a martelar nossos ouvidos com o tema da globalização, tratando a soberania como coisa de dinossauros, e esquecendo que significa a autodeterminação da sociedade, a promoção dos fins próprios à sociedade organizada. O Estado moderno tem o sentido de imposição de limites ao livre arbítrio dos agentes econômicos no mercado. O Estado impõe regras e doma o mercado. Portanto, a chamada globalização não é em si um valor da "modernidade", mas, pelo contrário, pode significar o perigo de um retrocesso histórico insuportável.

Um projeto para equacionar, da perspectiva que expusemos aqui, tais questões contemporâneas somente pode surgir se não abandonarmos as trincheiras da liberdade, da igualdade e da democracia, de tal forma que possamos conformar a realidade a esses valores. Os seres humanos somos hábeis e capazes para feitos tecnológicos formidáveis, para construir artefatos de inimaginável poder letal, para conectar uma aldeia da Sibéria a uma aldeia do Brasil; temos de ser capazes de nos fazermos senhores do futuro e de "globalizar" a dignidade humana. Não aceitemos ser conduzidos pelos fatos da sociedade contemporânea como se fossem fatos da natureza, e não o resultado de ações humanas. Não aceitemos essa tal "modernidade" que querem nos enfiar goela abaixo como valor, quando nada mais é que a velha e conhecida história da escravidão e da submissão de homens a homens.

Afirmar e concretizar os direitos dos homens é o desafio do nosso tempo. Podemos e devemos vencê-lo.

Marcio Sotelo Felippe - Procurador do Estado de São Paulo
Discurso proferido na abertura do Seminário Direitos Humanos, Globalização e Pobreza, realizado no mês de novembro de 1996, na Faculdade de Direito da USP, promovido pela Procuradoria Geral do Estado de São Paulo e APESP

 




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