O êxito do II Fórum Social Mundial de Porto Alegre,
que terminou no último dia 5, residiu no modo como soube
interpretar o contexto internacional e oferecer uma alternativa
credível.
O segundo Fórum Social Mundial (FSM) correspondeu inteiramente
às expectativas. Foi mais uma afirmação
pujante do único fato político na cena internacional
neste limiar do século, o movimento contra a globalização
neoliberal e a favor de uma globalização alternativa,
solidária, pautada pelo respeito da dignidade humana.
O contexto internacional dos últimos meses que precederam
o Fórum não parecia favorável, e houve
mesmo quem manifestasse cepticismo acerca da oportunidade do
Fórum. O modo como os EUA utilizaram os trágicos
acontecimentos do 11 de setembro, para lançar uma guerra
global potencialmente sem fim contra um inimigo difuso, pareceu
relegar para segundo plano os interesses meramente econômicos
da busca incessante de lucros através da ditadura dos
mercados contra a qual o povo de Porto Alegre se vinha manifestando.
No entanto, os cépticos não tinham razão.
Não só mais do que duplicaram os participantes
e as organizações e movimentos presentes, como
foram muitos mais os temas tratados e as propostas formuladas.
Quais foram as razões deste êxito? Distingo duas
fundamentais. Em primeiro lugar, o Fórum soube interpretar
bem o contexto internacional; em segundo lugar, soube buscar
nessa interpretação a nova exigência e a
nova urgência dos seus objetivos. Interpretou o ressurgimento
da guerra e do militarismo, não como um fato novo e diferente
da globalização neoliberal, mas antes como um
dos seus componentes, que adquiriu agora mais proeminência
e visibilidade, conferindo uma nova complexidade à dominação
mundial do capitalismo global. Confrontados com a debilidade
e o declínio crescentes da sua economia, inseguros quanto
a futuros acessos a fontes de energia, temerosos da concorrência
potencial de uma nova moeda forte, o euro, os EUA lançaram
mão de um recurso, a guerra e o militarismo, onde detêm
total supremacia, com o objetivo de atenuar ou compensar as
suas debilidades ou incertezas. O que o neoliberalismo deixou
de poder fazer exclusivamente através dos mercados passou
a pretender fazê-lo com a guerra.
Esta interpretação por parte do Fórum
exigiu que este desse uma resposta à altura da nova complexidade
da cena internacional. E assim sucedeu. A resposta foi dada
a dois níveis. Num primeiro deles, o Fórum procurou
dar resposta às novas problemáticas e exigências
debruçando-se sobre temas que anteriormente não
tinham sido abordados, nomeadamente os temas da guerra e da
paz e o tema da segurança coletiva contra a violência
estatal ou não estatal. Ante uma globalização
neoliberal que se procura reforçar sob a forma de uma
cruzada militar contra o terrorismo, o FSM juntou às
suas reivindicações econômicas e sociais
a reivindicação da paz e de uma concepção
de segurança coletiva assente no diálogo e na
diminuição das desigualdades sociais, como condição
para que a segurança de uns não seja obtida à
custa da insegurança dos outros. No momento em que os
EUA procuram justificar, com a cruzada antiterrorista - como
antes fizeram com a cruzada anticomunista e a cruzada antidroga
-, a imposição da sua vontade a todos os países
do mundo e, nomeadamente, aos seus rivais econômicos,
a União Européia e o Japão, e parecem fazê-lo
com pleno êxito, o encontro de Porto Alegre afirmou-se
como o único acontecimento político internacional
deste período realmente autônomo em relação
às imposições norte-americanas. Ao contrário,
o FSM orientou-se apenas pelos seus objetivos próprios
e alimentou-se com a energia de todos os que vêem nesses
objetivos o único modo de sair de um mundo injusto, destruidor
da vida e da natureza, movido não pelas necessidades
da humanidade, mas pela avareza daqueles que se pretendem apropriar
dela.
Mas o FSM respondeu ao contexto internacional com um segundo
nível de respostas. Teve uma preocupação
consistente em complementar o discurso da denúncia com
a apresentação de propostas. O segundo Fórum
foi, assim, muito mais conclusivo e propositivo. Redigiram-se
centenas de documentos com milhares de propostas setoriais para
serem transformadas em temas de lutas políticas nos diferentes
países e globalmente. E esta preocupação
começou desde logo com a necessidade de defender a legitimidade
dessas lutas contra um contexto securitário e militarista
e a tentação autoritária que dele emerge
no sentido de criminalizar as manifestações de
protesto contra a globalização neoliberal. Assim,
as centenas de cidades que participaram no Fórum Mundial
das Autoridades Locais, que se reuniu nos dias imediatamente
anteriores ao FSM, comprometeram-se a defender o direito às
manifestações. Contra um clima de guerra, as propostas
afirmam o valor supremo da paz. Contra a concorrência
desenfreada pelo acesso aos recursos naturais e pela privatização
daqueles que até agora foram livres e públicos,
o FSM aborda pela primeira vez a questão da água
e propõe que ela seja considerada patrimônio mundial
da humanidade.
O êxito do FSM esteve muito para além do que nele
se decidiu. Esteve na afirmação e consolidação
desta gigantesca rede de movimentos sociais e de organizações,
uma rede que não se deixou intimidar pelos acontecimentos
recentes e que, pelo contrário, colheu deles a urgência
para prosseguir e ampliar a pressão organizada e pacífica
contra aqueles que pretendem transformar o mundo num gigantesco
condomínio fechado.
Boaventura de Sousa Santos
Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor
catedrático da Faculdade de Economia da Universidade
de Coimbra (Portugal)